(Foucault x Freud)
Por artes da existência podemos entender “práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não somente se fixam regras de conduta, como também procuram se transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de valores estéticos e responda a certos critérios de estilo” (Foucault, 1984).
Frente a essa definição, podemos perguntar o que entendemos pelo “ser singular” do sujeito, ou seja, a substância que vai ser submetida aos jogos de verdade e poder que constituem a moral sob a qual vivemos. Em outras palavras: quando pensamos em nos modificar, sempre pensamos em modificar uma parte de nós. Essa parte variou imensamente ao longo do tempo: o domínio do desejo carnal; a força física para o combate ou as práticas de resistência; a dietética (como, quando e por que comemos); a erótica (como, quando e por que amamos); a econômica (como, quando e por que trabalhamos)… Essas diversas “substâncias” são alvos de vários exercícios, de práticas de ascese.
A psicanálise surgiu no final século XIX, mas pode ser vista como uma “tecnologia de si” com muitas semelhanças e diferenças das tecnologias terapêuticas existentes ao longo da história do Ocidente. A meu ver, não há uma substância ética universal a ser manipulada e também não há um modelo moral universal a ser constituído. Aproximar a existência da arte me parece parte do arsenal teórico que cria a noção de pulsão para fazer frente à noção de instinto. Não temos uma regra fixa e determinada sobre o que devemos ser ou como devemos nos comportar. Isso é construído historicamente e libidinalmente.
Pensar em arte da existência sem pensar no poder das ficções é deixar de lado o principal. Através do ficcional vislumbramos isso em “Escritores Criativos e Devaneio” - podemos inventar novas realidades. Reside aí, talvez, o poder político da literatura: imaginar novos mundos e novas formas de existência. Acredito que aproximar nossa existência de uma obra de arte é lembrar que essas práticas de construção subjetiva não têm fim. A teleologia moral varia muitíssimo de tempo em tempo, e está sempre imersa em outros tantos fins morais quantos podemos imaginar. Mais uma vez, gosto de pensar que no início de todo sonho há um “umbigo”, núcleo duro, resistente a toda interpretação “finalista” e que nos obriga sempre a novas narrativas, nos obriga a sermos constantemente intérpretes de nós mesmos.
Somente através do olhar interdisciplinar é possível tornar mais visível o que diversos jogos de poder tentam escamotear separando, dividindo, disciplinando. Nesse sentido, não podemos manter esses conhecimentos isolados. A literatura mostra que há mais interpretações possíveis, a psicanálise ensina o que há de inconsciente e no desejo de novas existências, a literatura mostra o matiz… Trata-se, em verdade, de um convite poderoso ao pensar diferente. De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição dos conhecimentos e não o descaminho daquele que conhece?
Existem momentos na vida que: saber que se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou a refletir. Talvez esses jogos, com nos mesmos, têm que permanecer nos bastidores; e, no máximo, fazer parte desses trabalhos de preparação que desaparecem por si sós a partir do momento em que produzem seus efeitos. Mas o que é filosofar hoje em dia se não consistir em tentar saber de que maneira e até onde seria possível pensar diferentemente em vez de legitimar o que já se sabe.
tudo bem
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