Existe uma idéia de que a própria arte, seja literatura, pintura ou música, deve estabelecer uma relação com o real que vai além do simples embelezamento, da imitação, para ser deixada nua, para se tornar desmascaramento, raspagem, escavação, redução violenta da existência aos seus elementos primários. Essa visão da arte foi se firmando de modo marcado a partir da metade do século XIX, quando a arte (Baudelaire, Flaubert, Manet) se constituiu lugar de irrupção daquilo que esta do lado de baixo, de tudo aquilo que, em uma cultura, não tem o direito ou, pelo menos, não tem a possibilidade de se expressar.
Trata-se do antiplatonismo da arte moderna: a arte como lugar de irrupção do elementar, como o despir-se da existência. Assim, a arte estabeleceu com a cultura, com as normas sociais, com os valores e os cânones estéticos uma relação polêmica, de redução, de recusa e de agressão. Um movimento incessante, a partir do século XIX, por meio do qual toda regra acadêmica, deduzida, induzida, inferida sobre a base de qualquer um dos seus atos precedentes, foi rejeitada e recusada por sucessivos atos. Pode-se, assim, encontrar uma espécie de cinismo permanente com relação a toda forma de arte conquistada: um antiaristotelismo da arte moderna. Antiplatônica e antiaristotélica: posta a nu, redução ao elementar da existência; rejeição, negação perpétua de toda forma já conquistada.
Essas duas feições conferem à arte moderna uma postura que poderia ser definida como anticultural. A arte moderna é, pois, o cinismo da cultura que se revolta contra si mesma. E é a concretização do mundo moderno, das formas mais intensas de dizer a verdade sem receio de ferir. Obviamente faltam muitos aspectos a ser avaliados, ou seja, a da própria gênese da questão da arte como cinismo da cultura.
Uma relação estreita entre cinismo da arte e vida revolucionária, uma tentativa de unir a coragem de dizer a verdade à violência da arte como irrupção do verdadeiro. Essa função cínica está no coração da arte moderna, no seu papel dentro do movimento revolucionário, na marginalização. Destarte, o cinismo antes de vincular, é uma ruptura entre o ethos da arte moderna e o da prática política, seja ela também revolucionária.
Poder-se-ia formular o mesmo problema em termos diferentes: por que o cinismo, que no mundo antigo assumiu as dimensões de um movimento popular, tornou-se, nos séculos XIX e XX, uma atitude elitista e marginal, mesmo que importante para a nossa história, e por que o termo cinismo é utilizado quase sempre em referência a valores negativos?
Podemos inferir ainda que o cinismo seja congênere de outra escola do pensamento: a do ceticismo. Mais do que uma doutrina, é um estilo de vida, um modo e uma disposição de ser, de fazer, de dizer, uma atitude a colocar à prova, a examinar, a colocar em dúvida. O ceticismo implica uma atitude ao campo científico, ignorando o exame dos aspectos práticos, enquanto o cinismo implica uma centralidade na atitude prática, articulando a falta de curiosidade ou a indiferença teórica e a aceitação de alguns princípios fundamentais.
A combinação entre cinismo e ceticismo é o cerne do niilismo, entendido como uma atitude com relação à verdade, desconsiderando-o, entretanto, como destino inelutável da metafísica ocidental, ou como uma vertigem de decadência de um mundo ocidental que se tornou incapaz de crer em seus próprios valores.
O niilismo deve ser considerado, em primeiro lugar, como uma figura histórica particular pertencente aos séculos XIX e XX, mas deve também ser inscrito na longa história que o precedeu e preparou, a do ceticismo e do cinismo. Em outras palavras, deve ser visto como um episódio, ou melhor, como uma forma, historicamente bem definida, de um problema que a cultura ocidental começou a se colocar já há muito tempo: o da relação entre vontade de verdade e estilo de existência.
O cinismo e o ceticismo são, então, formas manifestas da ética da verdade, estão no cerne do niilismo e trazerem a tona elementos essenciais da cultura ocidental, ou seja, a verdade colocada em discussão pelo próprio amor pela verdade. Assim, qual é a forma de existência que melhor combina com esse contínuo interrogar-se? Qual é a vida necessária quando a verdade não é mais necessária? O princípio do niilismo não é: Deus não existe, tudo é permitido. Ao contrário: se devo me colocar diante do pensamento que "nada é verdadeiro", como devo viver?
Posto o paradoxo entre o amor da verdade e a estética da existência, inseridos no âmago da cultura ocidental, não me preocupa traçar a história da doutrina cínica, tanto quanto a da arte de existir, pois, tantas verdades diversas e que formou tantas diferentes artes de existir foram inventadas que o cinismo serve para nos lembrar: pouca verdade é indispensável para quem quer viver verdadeiramente e pouca vida é necessária quando nos mantemos verdadeiramente na verdade.
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