quinta-feira, 8 de abril de 2010

Hamlet

"Se fôsseis tratar todas as pessoas de acordo com o merecimento de cada uma, quem escaparia da chibata? Tratai deles de acordo com vossa honra e dignidade. Quanto menor o seu merecimento, maior valor terá nossa generosidade." (Ato II, Cena II)
“Ser ou não ser... Eis a questão. Que é mais nobre para a alma: suportar os dardos e arremessos do fado sempre adverso, ou armar-se contra um mar de desventuras e dar-lhes fim tentando resistir-lhes? Morrer... dormir... mais nada... Imaginar que um sono põe remate aos sofrimentos do coração e aos golpes infinitos que constituem a natural herança da carne, é solução para almejar-se. Morrer..., dormir... dormir... Talvez sonhar... É aí que bate o ponto. O não sabermos que sonhos poderá trazer o sono da morte, quando alfim desenrolarmos toda a meada mortal, nos põe suspensos. É essa idéia que torna verdadeira calamidade a vida assim tão longa! Pois quem suportaria o escárnio e os golpes do mundo, as injustiças dos mais fortes, os maus-tratos dos tolos, a agonia do amor não retribuído, as leis morosas, a implicância dos chefes e o desprezo da inépcia contra o mérito paciente, se estivesse em suas mãos obter sossego com um punhal? Que fardos levaria nesta vida cansada, a suar, gemendo, se não por temer algo após a morte - terra desconhecida de cujo âmbito jamais ninguém voltou - que nos inibe a vontade, fazendo que aceitemos os males conhecidos, sem buscarmos refúgio noutros males ignorados? De todos faz covardes a consciência. Desta arte o natural frescor de nossa resolução definha sob a máscara do pensamento, e empresas momentosas se desviam da meta diante dessas reflexões, e até o nome de ação perdem.” (Ato III, cena I)
"Eu, de mim, considero-me mais ou menos honesto, mas poderia acusar-me de tais coisas, que teria sido melhor que minha mãe não me houvesse dado à luz. Sou orgulhoso, vingativo, cheio de ambição, e disponho do maior número de delitos do que de pensamentos para vestilos, imaginação para dar-lhes forma ou tempo para realizá-los. Para que rastejarem entre o céu e a terra tipos como eu? Todos somos consumados velhacos; não deves confiar em ninguém." (Ato III, cena I)
"Que nobre inteligência assim perdida! O olhos do cortesão, a língua e o braço do sábio e do guerreiro, a mais florida esperança do Estado, o próprio exemplo da educação, o espelho da elegância, o alvo dos descontentes, tudo em nada! E eu, a mais desgraçada das mulheres, que saboreei o mel de suas juras musicais, ter de ver essa admirável razão perder o som, qual sino velho, essa forma sem par, a flor da idade, fanada pela insânia! Ó dor sem fim! Ter já visto o que vi, e vê-lo assim!" (Ato III, Cena I)
"O exagero ou descuido, no ato de representar, podem provocar riso aos ignorantes, mas causam enfado às pessoas judiciosas, cuja censura deve pesar mais em tua apreciação do que os aplausos de quantos enchem o teatro." (Ato III, cena II)
"(...) que indigna criatura acreditas que eu seja? Estás querendo fazer de mim um divertimento; estás procurando aparentar que conheces meus registros; estás querendo arrancar os meus segredos mais íntimos; pretendes sondar-me, fazendo que emita desde a nota mais grave até a mais aguda de meu diapasão; e possuindo tal abundância de música e tão excelente voz neste pequeno órgão, tu, contudo, não podes fazê-lo falar. Pelo sangue de Deus! Estás pensando que seja eu mais fácil de ser tocado que uma flauta? Toma-me pelo instrumento que melhor te agrade e por muito que me dedilhes, posso garantir-te que não conseguirás tirar qualquer som de mim(...)" (Ato III, Cena II)

O enigma e o segredo

O EU E OUTRO DE SI.
O amor platônico;
Os amantes maquiavélicos;
O pensador cartesiano.
Desnecessário a leitura de seus textos, pois, existe algo de já conhecido nestas representações que o senso comum atesta.
Do amor platônico, a dolorosa assimetria. No Fredo e no Banquete, só o amante ama; Sócrates, o amado, não ama a ninguém, pois busca o esplendor do Belo no céu inteligível. Amor platônico, pois, amor contemplativo.
Dos maquiavélicos, conhece-se a astúcia, o logro, o ardil; manipulando o amante, o amado conserva o segredo de suas intenções, domina por completo a ação, faz que o amante se enrede numa trama cujas origens, sentido e desenlace ele desconhece. O amor se alimenta da servidão e da dependência e, por vezes, induz o seduzido à autodestruição.
Do pensador cartesiano, guarda-se algo daquele que procede por ordem em suas reflexões. Ordem, clareza e comunicação de evidências caracterizam o conhecimento e a ação. Para ele, diz-se, a boa ordem é a chave do enigma.
Admira-se – olhar com respeito e veneração – é desconhecer a ordem das razões. Que se pense na álgebra, onde a incógnita não existe propriamente, pois o desconhecimento é remetido à dimensão do já conhecido.
O mundo cartesiano é, por assim dizer, sem mistério e sem desejo de revelação. A diferença essencial separa o enigma do segredo. Este nasce do desejo de criar o mistério – motivo pelo qual se desfaz numa conversação. Quanto ao enigma, se constitui do desejo de protegê-lo e aí reside a força interrogativa que permanentemente, suscita. A verdade não é a exposição que destrói o enigma, mas “a revelação que lhe faz justiça”.
Enigma arquetípico, o “conhece-te a ti mesmo”. Hegel escreveu: “Conhece-se a ti mesmo – esse mandamento absoluto não tem a significação de ser apenas um autoconhecimento, segundo as aptidões, o caráter, inclinações e fraquezas do indivíduo; tem, sim, a significação do conhecimento do verdadeiro do homem, do verdadeiro em si e para si”. Formulação por maestria filosófica, pois, para Hegel, “o desafio ao autoconhecimento, lançado pelo Apolo délfico, não tem o sentido de um preceito dirigido de fora ao espírito humano por uma potência estranha; antes o deus que impele ao autoconhecimento não é outra coisa que a própria lei absoluta do Espírito”. No santuário de Delfos se revelará ao passante que o homem é um joguete das forças do destino, de cuja fatalidade não pode escapar. Uma dor imerecida abate-se sobre o homem sem que ele saiba nem como nem por que. Ao absoluto da existência nada pode consolar.
Assim como um escravo que desfrute no sono de uma liberdade imaginária, quando começa a suspeitar que sua liberdade é só um sonho, teme ser despertado, e conspira com essas ilusões agradáveis para ser mais longamente enganado; assim, também, eu recaio, insensivelmente por mim mesmo, em minhas antigas opiniões, e fico apreensivo em despertar deste torpor, como medo que as vigílias laboriosas que sucederiam à tranqüilidade desse repouso, ao invés de trazerem alguma luz no conhecimento da verdade, não fossem suficientes para esclarecer a treva das dificuldades que me assolam.
A verdadeira ciência, aquela que propicia compreender a obra da criação, permitindo ingressar no segredo divino, torna-se meio de louvar o Criador: “Não apenas consegui algumas noções gerais com respeito à física”, “mas considerando até onde podia levar-me, acreditei não poder mantê-la escondida sem gravemente pecar contra a lei que obriga a procurar, porquanto esteja em nossa possibilidade, o bem geral de todos os homens”.
O que amam os olhos?
·                Rigorosamente a formosura, a forma e a figura do belo.
O que olham os olhos?
·                A formosura física, a astral (envoltório delicado e diáfano com que os deuses protegem sua alma para a entrada no corpo), a espiritual e a divina.
Porque podem vê-las?
·                Aprendendo o segredo que as produziu: os astros de que dependem, as cores que os espelham, os minerais que as retêm, os odores que as exprimem, o elemento e o humor que as temperam.
Quem ensina a vê-las?
·                A magia natural, através dos talismãs que mantêm presente a formosura do corpo ausente (...) A magia é iniciação ao mistério do mundo.
O Tratado do homem o revela: a anatomia é puramente mecanista, mesmo se o conhecimento do corpo fosse vistos numa perspectiva moral. Seria vão buscar uma interpretação moralizante da anatomia. Moraliza-la resultaria em reconhecer que as desordens do como foram introduzidas pelos “homens de ciência”. A história torna-se physis.
A alegoria mostra ao observador a ‘facies hippocratica’ da história como passagem originária petrificada. A história, em tudo o que nela desde o inicio é prematuro, sofrido e malogrado, se exprime num rosto – não, numa caveira (...). Essa figura, de todas a mais sujeita à natureza, exprime não somente a existência humana em geral (...). É a morte que grava mais profundamente a tortuosa linha de demarcação entre a ‘physis’ e a significação. Mas se a natureza desde sempre esteve sujeita à morte, desde sempre ela foi alegórica.
Corpo e alma deverão ser compreendidos sem qualidades, a partir das “naturezas simples”, aquelas que não requerem explicações e não serão assim, ilusões,
Se achares estranho que, para explicar (essas naturezas simples ou elemento), eu não me sirva das qualidades que se chama quente, frio, seco, e úmido, como o fazem, eu direi que essas qualidades parecem, elas mesmas, necessitar explicação (...) e podem ser explicadas sem que seja preciso supor outra coisa em sua matéria a não ser o movimento, a espessura, a figura e o arranjo de suas partes.
Conhecer o corpo humano na dimensão comum do corpóreo e do imaterial corresponde a alcançar a autonomia enquanto conhecimento e exploração das regiões do “homem interior”. O “homem interior” encontrava em sua alma vestígios do invisível, na anamnese do Bem – rememoração que era ascese, porque a substância, mesma matematizada, supunha uma proporção analógica da Alma com sua Causa, na participação do divino por intermédio da luz natural.

A arte moderna como veículo do cinismo

Existe uma idéia de que a própria arte, seja literatura, pintura ou música, deve estabelecer uma relação com o real que vai além do simples embelezamento, da imitação, para ser deixada nua, para se tornar desmascaramento, raspagem, escavação, redução violenta da existência aos seus elementos primários. Essa visão da arte foi se firmando de modo marcado a partir da metade do século XIX, quando a arte (Baudelaire, Flaubert, Manet) se constituiu lugar de irrupção daquilo que esta do lado de baixo, de tudo aquilo que, em uma cultura, não tem o direito ou, pelo menos, não tem a possibilidade de se expressar.

Trata-se do antiplatonismo da arte moderna: a arte como lugar de irrupção do elementar, como o despir-se da existência. Assim, a arte estabeleceu com a cultura, com as normas sociais, com os valores e os cânones estéticos uma relação polêmica, de redução, de recusa e de agressão. Um movimento incessante, a partir do século XIX, por meio do qual toda regra acadêmica, deduzida, induzida, inferida sobre a base de qualquer um dos seus atos precedentes, foi rejeitada e recusada por sucessivos atos. Pode-se, assim, encontrar uma espécie de cinismo permanente com relação a toda forma de arte conquistada: um antiaristotelismo da arte moderna. Antiplatônica e antiaristotélica: posta a nu, redução ao elementar da existência; rejeição, negação perpétua de toda forma já conquistada.

Essas duas feições conferem à arte moderna uma postura que poderia ser definida como anticultural. A arte moderna é, pois, o cinismo da cultura que se revolta contra si mesma. E é a concretização do mundo moderno, das formas mais intensas de dizer a verdade sem receio de ferir. Obviamente faltam muitos aspectos a ser avaliados, ou seja, a da própria gênese da questão da arte como cinismo da cultura.

Uma relação estreita entre cinismo da arte e vida revolucionária, uma tentativa de unir a coragem de dizer a verdade à violência da arte como irrupção do verdadeiro. Essa função cínica está no coração da arte moderna, no seu papel dentro do movimento revolucionário, na marginalização. Destarte, o cinismo antes de vincular, é uma ruptura entre o ethos da arte moderna e o da prática política, seja ela também revolucionária.

Poder-se-ia formular o mesmo problema em termos diferentes: por que o cinismo, que no mundo antigo assumiu as dimensões de um movimento popular, tornou-se, nos séculos XIX e XX, uma atitude elitista e marginal, mesmo que importante para a nossa história, e por que o termo cinismo é utilizado quase sempre em referência a valores negativos?

Podemos inferir ainda que o cinismo seja congênere de outra escola do pensamento: a do ceticismo. Mais do que uma doutrina, é um estilo de vida, um modo e uma disposição de ser, de fazer, de dizer, uma atitude a colocar à prova, a examinar, a colocar em dúvida. O ceticismo implica uma atitude ao campo científico, ignorando o exame dos aspectos práticos, enquanto o cinismo implica uma centralidade na atitude prática, articulando a falta de curiosidade ou a indiferença teórica e a aceitação de alguns princípios fundamentais.
A combinação entre cinismo e ceticismo é o cerne do niilismo, entendido como uma atitude com relação à verdade, desconsiderando-o, entretanto, como destino inelutável da metafísica ocidental, ou como uma vertigem de decadência de um mundo ocidental que se tornou incapaz de crer em seus próprios valores.

O niilismo deve ser considerado, em primeiro lugar, como uma figura histórica particular pertencente aos séculos XIX e XX, mas deve também ser inscrito na longa história que o precedeu e preparou, a do ceticismo e do cinismo. Em outras palavras, deve ser visto como um episódio, ou melhor, como uma forma, historicamente bem definida, de um problema que a cultura ocidental começou a se colocar já há muito tempo: o da relação entre vontade de verdade e estilo de existência.

O cinismo e o ceticismo são, então, formas manifestas da ética da verdade, estão no cerne do niilismo e trazerem a tona elementos essenciais da cultura ocidental, ou seja, a verdade  colocada em discussão pelo próprio amor pela verdade. Assim, qual é a forma de existência que melhor combina com esse contínuo interrogar-se? Qual é a vida necessária quando a verdade não é mais necessária? O princípio do niilismo não é: Deus não existe, tudo é permitido. Ao contrário: se devo me colocar diante do pensamento que "nada é verdadeiro", como devo viver?

Posto o paradoxo entre o amor da verdade e a estética da existência, inseridos no âmago da cultura ocidental, não me preocupa traçar a história da doutrina cínica, tanto quanto a da arte de existir, pois, tantas verdades diversas e que formou tantas diferentes artes de existir foram inventadas que o cinismo serve para nos lembrar: pouca verdade é indispensável para quem quer viver verdadeiramente e pouca vida é necessária quando nos mantemos verdadeiramente na verdade.

A arte da existência e da substância.

(Foucault x Freud)

Por artes da existência podemos entender “práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não somente se fixam regras de conduta, como também procuram se transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de valores estéticos e responda a certos critérios de estilo(Foucault, 1984).
Frente a essa definição, podemos perguntar o que entendemos pelo “ser singular” do sujeito, ou seja, a substância que vai ser submetida aos jogos de verdade e poder que constituem a moral sob a qual vivemos. Em outras palavras: quando pensamos em nos modificar, sempre pensamos em modificar uma parte de nós. Essa parte variou imensamente ao longo do tempo: o domínio do desejo carnal; a força física para o combate ou as práticas de resistência; a dietética (como, quando e por que comemos); a erótica (como, quando e por que amamos); a econômica (como, quando e por que trabalhamos)… Essas diversas “substâncias” são alvos de vários exercícios, de práticas de ascese.
A psicanálise surgiu no final século XIX, mas pode ser vista como uma “tecnologia de si” com muitas semelhanças e diferenças das tecnologias terapêuticas existentes ao longo da história do Ocidente. A meu ver, não há uma substância ética universal a ser manipulada e também não há um modelo moral universal a ser constituído. Aproximar a existência da arte me parece parte do arsenal teórico que cria a noção de pulsão para fazer frente à noção de instinto. Não temos uma regra fixa e determinada sobre o que devemos ser ou como devemos nos comportar. Isso é construído historicamente e libidinalmente.
Pensar em arte da existência sem pensar no poder das ficções é deixar de lado o principal. Através do ficcional vislumbramos isso em “Escritores Criativos e Devaneio” - podemos inventar novas realidades. Reside aí, talvez, o poder político da literatura: imaginar novos mundos e novas formas de existência. Acredito que aproximar nossa existência de uma obra de arte é lembrar que essas práticas de construção subjetiva não têm fim. A teleologia moral varia muitíssimo de tempo em tempo, e está sempre imersa em outros tantos fins morais quantos podemos imaginar. Mais uma vez, gosto de pensar que no início de todo sonho há um “umbigo”, núcleo duro, resistente a toda interpretação “finalista” e que nos obriga sempre a novas narrativas, nos obriga a sermos constantemente intérpretes de nós mesmos.
Somente através do olhar interdisciplinar é possível tornar mais visível o que diversos jogos de poder tentam escamotear separando, dividindo, disciplinando. Nesse sentido, não podemos manter esses conhecimentos isolados. A literatura mostra que há mais interpretações possíveis, a psicanálise ensina o que há de inconsciente e no desejo de novas existências,  a literatura mostra o matiz… Trata-se, em verdade, de um convite poderoso ao pensar diferente. De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição dos conhecimentos e não o descaminho daquele que conhece?
Existem momentos na vida que: saber que se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou a refletir. Talvez esses jogos, com nos mesmos, têm que permanecer nos bastidores; e, no máximo, fazer parte desses trabalhos de preparação que desaparecem por si sós a partir do momento em que produzem seus efeitos. Mas o que é filosofar hoje em dia se não consistir em tentar saber de que maneira e até onde seria possível pensar diferentemente em vez de legitimar o que já se sabe.