terça-feira, 15 de junho de 2010

Confiteor d'amore

As histórias que aqui desejo narrar não são particularmente censuráveis, mas o são na medida em que toda verdade escandaliza, mesmo ignorando as eventuais conseqüências a que estas histórias me levarão. Tenha certeza, porém, não me encontro enfraquecido o bastante para ceder aos delírios produzidos pelo medo, quase tão absurdos quanto às alucinações da esperança, obviamente mais incomodas. Assumir que meus dias estão contados nada significa, pois assim sempre o foram, como sempre o foram para todos.
Uma história de amor que se transforma em erupção poética.
“ma la vita ha trovato in quel momento, in quel passo, in quell'istante, il suo fulcro, la ragione, la sola che potrà resistere davanti a sé e al distruggersi del mondo, davanti ai soprusi inverecondi, alle perenni, invereconde offese ed altergie di chi crede di sapere e perciò stesso giudica e decide”
Em verdade, sempre busquei as múltiplas e apaixonadas relações de um homem com o objeto amado e entreguei-me a esse desporto com paroxismo, cujos excessos levaram-me a incorreção de meu modo de agir e pensar. Obvio que estes excessos redundaram em um luta relativamente equilibrada entre uma inteligência e uma astúcia sedutoramente selvagem, comparável adequadamente aos embustes dos homens. Mesmo agora, a simples lembrança do objeto amado é suficiente para despertar em mim o mais antigo dos instintos, por obra e graça do qual me sinto tanto a serpente sedutora quanto a maça.
Experimento, pois, com a mais insignificante das sutilezas que se apresentam nos acasos do cotidiano, um entendimento tão perfeito que nem a inteligência e nem a razão por si só poderiam me proporcionar. Assim, de cada arte praticada nas narrativas, retiro hoje um conhecimento que me compensa em parte os prazeres perdidos. Acreditei, e ainda acredito que seria possível partilhar da existência de todos os homens e que essa partilha seria uma das formas irrevogáveis da imortalidade. Momentos houve em que essa compreensão tentou ultrapassar a sensatez, indo do narrador à própria erupção poeta. Mas ali reinou o silêncio porque entrei nos domínios das metamorfoses do sonho.
Não cometa, entretanto, a injustiça de tomar-me por um vulgar renunciador, pois assim como a alimentação, que tem lugar duas ou três vezes ao dia e cuja finalidade é alimentar a vida, seduzir e ser seduzido merece certamente todas as nossas atenções. Degustar um fruto é fazer entrar em si mesmo um belo objeto vivo, estranho e nutrido, como nós, pela terra, é consumar uma imolação na qual nós nos preferimos ao objeto. Nunca degustei um pão sem maravilhar-me de que a sua massa pudesse transformar-se em desejo, calor e talvez, em coragem, pois o meu espírito, nos seus melhores momentos, não possuía senão uma pequena parte dos poderes assimilados do meu corpo.
Imaginem então apreciar cada iguaria separadamente, assimila-las em jejum, sabiamente degusta-las pelo desejo das papilas intactas, em contrário, se degusta-las numa profusão banal e cotidiana, forma no paladar e no estômago uma profusão indefinível, na qual o odor, o gosto e a própria substância essencial perdem seu valor peculiar e sua deliciosa identidade.
O vinho, por sua instância, tem a capacidade de inicia-nos nos mistérios da terra, nas riquezas ocultas. Degustar uma taça de vinho ao meio-dia, no estado de desalento, de tal forma que nos permita sentir nas entranhas seu fluxo quente, sua abrasadora dispersão ao longo das artérias, é uma sensação sedutoramente sagrada e, por vezes, demasiadamente forte para um cérebro humano. Falta, então, ao ato da sedução a latitude de que goza o filosofo por não poder permitir-se discordar dos demais ao mesmo tempo.
Mas necessitamos, é bem verdade, de alguns períodos de jejum ritual quando podemos conhecer as vantagens espirituais e também os horrores das diferentes formas de abstinência e da inanição. Nestas oportunidades nos questionamos as razões que levam os cínicos e os moralistas a colocarem a volúpia do amor entre os prazeres da destemperança, declarando-a, menos indispensável como o prazer de comer e de beber, pois podem abster-se dela. Por certo, pode-se esperar tudo do moralista, mas por parte do cínico há, sem dúvida, um equivoco. A hipótese reside no receio de uns e outros sobre seus próprios demônios. Resistindo-os, como a si mesmos, elaboram aviltamentos ao prazer e minam o poder terrível sob o qual sucumbiriam e, ao mesmo tempo, elevam-no a um patamar de estranhamento, pois assim não se sentem perdidos. Ótimo seria acreditar no pertencimento do amor às alegrias puramente físicas, assim, seria possível a um gastrônomo soluçar de prazer perante do seu prato favorito, como ao amante chorar sobre um ombro amado.
De todas as tramas, a do amor é a única capaz de desnudar a alma, a única na qual se abstrair aos delírios do corpo. A razão pode ser indispensável, mas o amante que conserva-la, não acredita no deus do amor. Tanto a abstinência quanto o excesso não encontram repouso senão no homem solitário. A humildade desnuda e transcende a derrota e a prece, renova a complexidade das recusas, do silêncio, das pobres inconfidências, das destemperanças, dos compromissos apaixonados entre o meu prazer e o prazer do outro, tantos laços impossíveis de romper e tão depressa rompidos.... Jogo cheio de mistérios, recorrente do amor de um corpo ao amor de uma pessoa, belo o bastante para dedicar-lhe parte de minha vida. Mas as palavras são sorrateiras, particularmente as do prazer. Absorvem as mais ilusórias realidades, desde as noções de aconchego, doçura e intimidade dos corpos, até as da violência, da agonia e do grito no silêncio.
Entendo, hoje, porque a confusão da razão, perante os prodígios do amor, inspirar-nos uma paixão de carícias exclusivamente animadas por uma personalidade diferente da nossa, e representa certos traços de beleza sobre os quais os melhores juízes discordariam. A sabedoria vernacular não se engana ao perceber no amor o ponto onde o secreto e o sagrado comungam-se com o profano ao se tocarem.
A experiência sensual equipara-se, pois, aos cultos secretos quando a primeira aproximação incita aos não iniciados o efeito de um rito mais ou menos aterrador e assustadoramente desconectado das temperanças que lhes são familiares, parecendo antes motivo de gracejo, vergonha, ou terror. O obstáculo mais sério para o homem de gosto é uma posição de eminência socialmente estabelecida, onde o poder conquistado comporta os maiores riscos de perda. Um passo a mais e teríamos aceitado a fantasia que consiste em acreditar que seduzimos ao nos impormos, coisa que é o começo do desencanto ou da presunção. Acabaríamos por preferir às verdades simples do deboche às astúcias da sedução, se ai também não prevalecesse o embuste. Talvez a prostituição seja realmente uma arte, mas a custo suporto esta arte, pois nada mais sórdido que um cúmplice.

Continua....

Nenhum comentário:

Postar um comentário