sábado, 19 de junho de 2010

A narrativa das Cartas

O objeto musical fica entre a palavra e o silêncio, entre o exterior e o interior, entre o significado da represen­tação e o sentido do corpo vivido. São espaços de criação e de experimentação estética, a música é, das diferentes criações artísticas, aquela que se encontra mais presente em todas as dimensões e extratos sociais e a qual ligamos de modo mais direto ao puro afeto.
A música comove-nos sem sabermos porquê, parece que nela encontramos sentimentos e emoções que espelham o nosso estado de espírito, lançando-nos num movimento onírico de fantasia e imaginação. Esta moção musical e o modo como intervém no individual é o objeto de intensifica a busca sobre a narrativa enquanto fenômeno da experiência humana e, provavelmente, encontra resposta nas teorias psicanalíticas. Esta abordagem toca temas como a insensibi­lidade e o modo como influencia e limita os contributos posteriores da apreesão sensitiva.  
A exemplo da importân­cia das trocas sonoras no seio da relação mãe-criança na sua dupla dimensão; relacional e de promoção da aquisição da linguagem - a relação da música com a linguagem e o prob­lema do significado musical, assim como a sua ligação com os fenôme­nos não-verbais e a dimensão silenciosa do “eu”. É provável que estejamos falando da sintese de diversas disciplinas ao oferecer uma outra perspectiva sobre uma atividade artística e cultural humana que nunca está ausente na vida e nos acasos do cotidiano.
A linguagem comum, por seu turno, só se transforma em linguagem literária quando renuncia ao seu sentido puramente lingüístico de comunicação, expressão narrativa e se refugia no silêncio. Silêncio que se converte em expressão de si mesmo, que cinge suas próprias regras, sua lógica, que inventa o seu código de valores estéticos, enfim, a sua retórica.
Quando mais cedo escurecia, tanto mais freqüentemente pedíamos as tesouras. Então ficávamos, nós também, horas seguindo com o olhar a agulha, da qual pendia indolente um grosso fio da lã. Pois sem dizê-lo, cada um de nós tomara de suas coisas que pudessem ser forradas – pratos de papel, limpa-penas, capas – e nelas alinhavávamos flores segundo o desenho. E à medida que o papel abria caminho à agulha com um leve estalo, eu cedia à tentação de me apaixonar pelo reticulado do avesso que ia ficando mais confuso a cada ponto dado, com o qual, no direito, me aproximava da meta.
Evaldo e Beth
Tomemos as Cartas como o efeito de um trabalho diante de um campo de intensidade pulsional que fornece um ritmo, uma cadência estranha, perpassada por ruídos e silêncios. Quer dizer, a partir da escuta de um território insólito, da aventura especulativa, como tentativa de definir aquilo que excede os limites da própria narrativa. Mas por quais meios esse resultado pode obtido? Sei que não será fácil achar a resposta.
A tensão e a pulsão que se estabeleceu entre as argumentações das Cartas e as que se seguiram a elas na tentativa de apreender seus sentídos, parecem ser portadoras da própria complexidade das narrativas, indicando uma convergência que toca o ponto do irredutível pulsional e de suas relações com o corpo.
A pulsão decorrida entre a palavra e o silêncio tornou-se um recurso, na medida em que indicava aquilo que insiste em se apresentar e, ao mesmo tempo, que resiste a uma total inclusão na cadeia simbólica. O trabalho é o de narrar e argumentar. Desse modo, toma-se o texto como um lugar de batalha, campo de intensidades, efeito do trabalho narrativo e argumentativo, mas também o espaço para outras interpretações.
Há um resto que resiste ao entendimento e que marca o corpo como o lugar dos enigmas que foram inscritos nas primeiras narrativas e resistente a todo trabalho da narração. O fato da narrativa das Cartas serem uma operação simbólica não garante que sua completude simbólica seja atingida ao final. A forma exigida pela argumentação indica que restam sempre alguns traços que não sofrendo uma metábole completa, são agora transpostos para uma forma que guarda a sua intensidade identitária.
Na leitura das Cartas faz percebe-se a presença de uma poiesis e revela o trabalho de transposição em que a forma criada indica a presença do corpo no seu aspecto pulsional e silencioso. O que resta, então? O que fazer com o que resta da pulsão? O que fazer com o silêncio e com o impossível que se revela depois de todas as tentativas de entendimento? Esta é a experiência que descreve as mesmas palavras silenciosas. Esta é a experiência que mostra a exigência de criação de uma forma, de uma poiesis, diante de um gozo inapreensível, pois o silêncio é para os ouvidos o que a noite é para os olhos.

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