quarta-feira, 11 de agosto de 2010

A aventura da modernidade

Marshall Bermann reabriu o debate sobre a questão da modernidade em um obra que provocou polêmica nos meios intelectuais. Tomando como pressuposto um conjunto de transformações econômico-sociais pertinentes à emergência do sistema capitalista a que chama de modernização Berman busca resgatar a modernidade como experiência vital e histórica utilizando-se do pensamento de autores que classifica como modernistas.
Berman surpreenderia a modernidade em tais pensadores pela constância de determinados princípios básicos, tais como o impulso criador/inovador, a percepção da totalidade e o princípio dialético, pelo qual se experimentaria a sensação de ganho e de perda, de fascínio e de repúdio diante das transformações que se desencadeiam em turbilhão. A riqueza do pensamento de Berman remonta à retomada de autores como Marx, Baudelaire, Benjamin, ou, ainda, dos escritores russos do século XIX, como Gogol e Dostoiévski.
Centralizando sua crítica na precariedade da dimensão espaço-temporal da análise de Berman (e na falta de historicidade do conceito de modernidade), como na radical discordância da idéia de revolução subjacente, Perry Anderson ressalta que o capitalismo é descontínuo no seu processo de realização ao longo do tempo e que mesmo no século XIX ele não se encontra difundido de maneira uniforme.
Dessa forma, ao identificar a modernidade como experiência histórica desde o século XIX, Berman estaria usando um conceito deslocado de sua temporalidade histórica. Da mesma forma, ao visualizar a modernidade dentro de um período tão dilatado, Berman incorreria também num tipo de análise não classista. O resultado final é uma crítica cabal ao próprio marxismo, uma vez que sua visão, na opinião de Anderson, seria não-histórica, não-classista, não-dialética e não-revolucionária.
A resposta de Berman prende-se mais às discussões teóricas da crítica de Anderson do que às dúvidas históricas assinaladas. Assim, Berman sustenta que as respostas não são encontráveis na teoria pronta, mas sim nas condições concretas objetivas do cotidiano; da mesma forma, a revolução coletiva passa pela pessoal e os "sinais pela rua" apontam as mudanças, mas para quem está aberto para percebê-Ias. Restaria, contudo, a discussão central da não-historicidade e da ausência de dimensão classista do conceito.
Remontando à obra de Berman, não parece que ele "descole" o conceito das condições históricas objetivas que lhe dão suporte (a saber, o processo de formação e afirmação do capitalismo). É evidente, contudo, que Berman não centraliza sua análise neste processo de transformações econômico-sociais (a modernização) ou na ação classista da burguesia, mas os toma como pressupostos do seu ponto central de análise, que é o resgate da modernidade como experiência vital no pensamento de autores modernistas.
Argumentando ainda a favor da historicidade do conceito, pode-se perceber que a maior parte dos autores citados por Berman como portadores de modernidade são do século XIX, o que sem dúvida remete a este recorte temporal como o epicentro do fenômeno. Nesse sentido, é possível fazer confluir, dentro de um mesmo processo de desenvolvimento capitalista, a emergência do sistema de fábrica como forma acabada e vitoriosa e a modernidade como experiência histórica e vital.
Tomando a modernidade como vivência e traduzida em formas de ação, sentir e pensar, considera-se ser o sistema de fábrica o núcleo central que proporcionou todas estas transformações. Ele seria como o "coração" do capitalismo, ao passo que a modernidade compareceria como a expressão da "alma" daquele processo.
O que, contudo, se considera como fundamental na análise de Berman é justamente o aspecto dialético da vivência da modernidade: "[..] ser moderno é viver uma vida de paradoxo e contradição [.:] é fazer parte de um universo no qual, como disse Marx, tudo que é sólido desmancha no ar"'
Este processo desencadeado com o chamado "turbilhão de mudanças", que acompanharia o capitalismo desde o seu surgimento, atingiria no século XIX um ponto clímax, dando aos indivíduos a sensação de viver em dois mundos, um que se insinua e se impõe com rapidez e um que, aparentemente sólido, é superado rapidamente pelo novo.
Na posição de Berman, a contradição estaria presente na base deste mundo moderno revolucionado pelo sistema capitalista em construção. Não se trata apenas de restaurar a dialética como motor da história, mas sim de resgatar a dialética como postura vital dos indivíduos diante das transformações em cadeia.
Crê-se ser justamente esta identificação de uma postura de atração-repúdio, celebração-combate, fascínio-temor os elementos que fazem Berman retomar a leitura de Marx, Baudelaire e Benjamin. Com aguda percepção, Berman surpreende em pensadores do século XIX esta atitude de desejo de mudança mesclada com a nostalgia de um mundo que se desagregava, perante a espiral do progresso e o impacto da técnica: "[...] sentiram a modernidade como um todo, um momento em que apenas uma pequena parte do mundo era verdadeiramente moderna".
Em Marx, Berman identificaria a postura-símbolo da modernidade, uma vez que o maior crítico da burguesia experimentaria ao mesmo tempo uma admiração pelas forças que o capitalismo era capaz de desencadear. Se, por um lado, a ordem burguesa, no seu afã de destruir barreiras, daria margem ao desenvolvimento de tendências críticas ao próprio sistema, por outro lado o capitalismo seria capaz de auferir forças de suas próprias crises internas. Qual fênix em contínuo renascer das próprias cinzas, este fenômeno seria para Marx um instrumento de tensão entre a sua capacidade crítica e o seu sonho mais radical, configurando aquela postura que Gramsci definiria como o conflito entre "o pessimismo do intelecto e o otimismo da vontade".
Trata-se, sem dúvida, de uma outra leitura de Marx, mas que, a rigor, não se opõe ao Marx que disseca e desvela os mecanismos da dominação burguesa e do sistema de fábrica. Crítica e repúdio, mas também admiração, magia e fascínio pelo vigor de um sistema em construção.
Postura similar poderia ser encontrada em Baudelaire, que oscila entre a celebração da burguesia como classe e a denúncia do caráter arrasador do processo técnico trazido pela modernidade. Assim, Baudelaire tem momentos nos quais legitima a propriedade, como fonte de poder e sinônimo de força, consagrando o direito de mando da burguesia como justo.
No seu texto sobre o "Salão de 1846", dedicado aos burgueses, Baudelaire afirmava: “Vós sois a maioria numerosa e inteligente; portanto vós sois a força que é a justiça”. "Uns sábios, outros proprietários; um dia radioso virá em que os sábios serão proprietários, e os proprietários sábios. Então vosso poderio será completo, e ninguém protestará contra ele. Esperando esta harmonia suprema, é justo que aqueles que não são senão proprietários aspirem a tornar-se sábios; porque a ciência é um gozo não menor que a propriedade".
Flui do texto o indicativo de que o saber e a cultura devem ter o apoio, o mecenato e a predileção da classe burguesa, complementos necessários a uma situação de predomínio sobre a sociedade que se apoiava sobre a riqueza. A ambigüidade, contudo, permanece uma constante em Baudelaire. Ora o poema das Flores do Mal aparece como o porta-voz da burguesia, como no já citado caso do Salão de 1846, ora se volta contra ela. Tome-se o caso da figura do dandy, que ocupa um lugar central na sua obra.
Ao inverso da burguesia, este não tem uma função claramente assinalada. O dandy é um diletante, um vagabundo, um boêmio, que não procura atingir outro fim senão o de celebrar por tudo e sempre a glorificação das aparências, da beleza e das sensações. Note-se a dialética que preside a personagem: é antieconômico e, como tal, antiburguês; não faz nada, tal como o antigo aristocrata, mas ao mesmo tempo é a imagem de um homem revoltado por excelência.
Tal como o artista, é produto de sua época, mas contra ela se volta, na busca de um ideal estético livre da mercantilização da vida. Por outro lado, esta mesma ordem burguesa, que fora capaz de desencadear um surto de desenvolvimento tecnológico que dotara o mundo de novos inventos, é encarada pelo escritor como catastrófica e destruidora da verdadeira arte e do belo.
Para Baudelaire, o progresso, sendo o domínio progressivo da matéria pelo homem, era, ao mesmo tempo, uma invenção da filosofia do seu tempo: "[...] idéia grotesca que floresceu sobre o terreno da fatuidade moderna, desincumbiu cada um do seu dever; livrou toda a alma de sua responsabilidade, libertou a vontade de todos os laços que lhe impunham o amor ao belo" .
Para o senso comum do homem francês, o progresso era o vapor, a eletricidade e o gás, numa evidência da superioridade industrial que lhe fazia perder a noção das diferenças que caracterizam os fenômenos do mundo físico e do mundo moral, do material e do espiritual. Nesse sentido, ao caracterizar o progresso como "moderna lanterna que jogava sombra sobre todos os objetos do conhecimento", intuía que nesta idéia mestra dos novos tempos se encontrava um elemento velador da realidade.
Extrapolando seu domínio da ordem material para a ordem da imaginação, o progresso cegava e obliterava os sentidos e o senso crítico. Mesmo admitindo que, na ordem material, se procedia um progresso incontestável, Baudelaire se perguntava qual a garantia do progresso para o amanhã, em que o futuro se apresentava como uma conquista assegurada, por meio de uma série indeterminada quanto a seus fins: "[...] o progresso indefinido não será sua mais engenhosa e sua mais cruel tortura; se, procedendo por uma opiniática negação de si mesmo, ele não será um modo de suicídio incessantemente renovado e se, fechado no círculo de fogo da lógica divina, ela não se assemelharia ao escorpião que se volta contra si mesmo com a sua terrível cauda, este eterno 'desideratum' que faz seu eterno desespero".
Resgata-se, portanto, em Baudelaire, assim como em Marx, uma atitude de ambigüidade, perante a evidência do triunfo burguês e o reconhecimento de sua capacidade transformadora da natureza e da relação entre os homens, por um lado, e as conseqüências deste processo, por outro. O alastramento do capitalismo, tendo por arauto a figura da máquina, materialização do progresso, do avanço da técnica e do engenho humano, instalaria na sociedade a crescente fascinação pelo novo, pela recente descoberta, pelo invento atraente, pelo engenho fantástico, insuspeitado até então pelos homens de outras épocas.
O século XIX foi, por excelência, um momento de transformação em múltipla escala. A população aumentara, as cidades cresceram e colocaram aos governantes toda uma sorte de exigências, desde a reordenação espacial, redesenhando as ambiências, até o cumprimento dos serviços públicos demandados pelo "viver em cidades".
Produtos novos e máquinas desconhecidas atestavam que a ciência aplicada à tecnologia era capaz de tudo ou, pelo menos, quase tudo. O valor dominante era o do progresso, caro às elites que dele faziam o esteio de uma visão de mundo triunfante e otimista e tem por corolário a confiança no homem, no indivíduo autor e motor das mudanças que cada um pode constatar na sua proximidade imediata tais como a implementação, depois a extensão da rede da estrada de ferro que são percebidas como as benfeitorias às quais o 'trabalho' ou a 'instrução' poderão permitir de participar plenamente.
O indivíduo tem então um papel a desempenhar na história coletiva, a do progresso da humanidade. Esta noção de progresso é desenvolvida com a idéia de um mundo melhor para todos. Entretanto, no quadro das transformações capitalistas também se geraram as condições miseráveis de existência e trabalho dos operários fabris e deram margem a movimentos associativos e de resistência da classe trabalhadora. Pensadores como Proudhon, Fourier e Marx opunham ao individualismo uma visão do social que solidificava o sentimento classista dos subalternos.
Em suma, a homogeneização do mundo, pretendida pelo capitalismo, tinha um verso e um reverso, que daria aos contemporâneos a sensação aludida por Berman da espiral de transformação, da postura vital de atração e repúdio, do "isto" e do "aquilo". Neste contexto, a modernidade, como sentimento, sensação, postura estética e mentalidade, traduz-se pela noção de exigência: é preciso "ser do seu tempo", "acompanhar o ritmo da história", "captar a mudança e mudar com ela", como ação e pensamento.
Como diria Baudelaire: "a modernidade é o transitório, o fugitivo, o contingente; a metade da arte, da qual a outra metade é o eterno e o imutável". Ou seja, o sistema de fábrica era capaz de, com velocidade crescente, oferecer à sociedade a última moda e a mais recente mercadoria que, contudo, já estava ameaçada de ser suplantada a cada instante pelo novo fruto da aplicação da ciência à tecnologia.
As coisas deixavam assim de ter a sua perenidade, a sua permanência, para que se privilegiasse o efêmero e o transitório. Não é por acaso, pois, que Baudelaire opusesse à modernidade-mudança uma visão da arte como o eterno e o imutável. Talvez por ser espectador e ator da "vida moderna" que ele buscou captar, Baudelaire enfatiza nesta afirmação a modernidade como o transitório, na qual se evocam os componentes mais característicos do seu tempo: a moda, a novidade, o progresso.
Há, contudo, uma outra leitura do mesmo Baudelaire, na qual ele focaliza a modernidade como um todo, sendo o eterno e o transitório seus dois componentes. Nesta outra definição, Baudelaire estaria resgatando a historicidade do conceito, que supõe a faculdade de passar de uma época a outra e de ser reconhecido como tal. Assim, a modernidade não seria só o novo, a curta temporal idade de uma época naquilo que ela tivesse de mais passageiro, como a moda.
Dessa maneira, Baudelaire apontaria para a modernidade como o "sentido da vida presente", que se renova e se historiciza em cada contexto, em cada sujeito, em cada objeto. Mais ainda, dilataria a modernidade para além da sua época, como aquilo que toca mais ao sujeito no seu tempo.
Neste ponto, há uma ambivalência no tocante à concepção do tempo e aos padrões clássicos da Antigüidade na sua confrontação com o novo e o moderno. De certa forma, o presente dos homens até então estivera sempre reorientado pelo passado, tanto no que diz respeito a uma concepção de história edificante ou mesmo da vida quanto a uma eterna e inevitável comparação com a produção artística da Antigüidade, considerada insuperável.
Com a modernidade, o presente, até aí carregado de todo o passado, se volta para o futuro. Esta sensibilidade nova para o futuro; sustentada pela idéia do progresso, arrasta uma consciência alargada sobre o tempo. Em contrapartida, o passado não estando mais fixado nem limitado numa tradição dada, o artista vai procurar vieses além da antigüidade ou do classicismo. [...] O tempo da modernidade é o presente, distinto do passado e do futuro, e simultaneamente portador dos dois. Esta nova concepção do tempo conduz o homem a conferir um valor específico à época na qual ele vive".
Não se pode, contudo, pensar que a Antigüidade pudesse estar esquecida ao longo do século XIX. Pelo contrário, ela sempre esteve presente e viva e, embora na busca de inspiração e padrões novos, adequados aos também novos tempos, Baudelaire almejava para a modernidade um status de arte antiga. Ou seja, mesmo na sua busca de superação, é ainda o padrão clássico o que prevalece como cânone.
Retomemos, contudo, o fio da meada. As transformações socioeconômicas traz idas pelo sistema de fábrica têm a sua contrapartida ou a sua outra face na modernidade, traduzida em experiências, sensações vitais e mentalidades, que  se configuraram de modo especial no século XIX. Uma destas manifestações da modernidade surpreendida nos pensadores do século passado é a atitude de ambigüidade, assinalada, como se viu, em Marx e Baudelaire.
A mesma percepção teria Benjamin, o notável pensador canhestro, que foi, se não insuperável, pelo menos brilhante no resgate de tais questões. Como refere Berman, "mesmo a mente crítica e lúcida do marxista se vê afetada pelo charme da sociedade burguesa".
Diante da fascinante Paris, Benjamin desvela as tramas da dominação do capital, mas "não tem pressa" de ser salvo. Segundo Flávio Kothe, Benjamin: "[...} adianta a caracterização da 'modernidade' pela relação que soube estabelecer, no processo de industrialização capitalista, entre desenvolvimento urbano, técnicas de reprodução e produção literária".
Mantendo ele próprio uma atitude ambivalente para com a sociedade burguesa, Benjamin, ao se debruçar sobre Baudelaire, resgata neste autor uma postura similar: "Amaldiçoa o progresso, abomina a indústria do século atual e, mesmo assim, compraz-se na atmosfera toda especial que esta indústria tem acarretado para a nossa vida de hoje".
Indo mais além na análise da ambivalência de Baudelaire, Benjamin aponta para o tema da multidão, caro aos escritores do século XIX. Para Engels e para Poe, a massa tem algo de ameaçador, mas em Baudelaire exerce uma sensação ora de repúdio, ora de atração. Ele é, ao mesmo tempo, cúmplice deste indivíduo sem rosto e sem nome e dele também busca diferenciar-se, recusando a massificação.
Foi interrogando-se sobre os conceitos baudelairianos que Benjamin articulou e amadureceu os seus, indo mais longe no seu processo de reflexão sobre a realidade. Na Paris do Segundo Império, época de Baudelaire, Benjamin procurou desvendar o processo mediante o qual se construiu o mundo material e o "espírito" do século XIX.
O crescimento da indústria, pela própria dinâmica da sua acumulação, obriga-se a aperfeiçoar constantemente os métodos produtivos, criando novas tecnologias e pondo à disposição dos consumidores nova gama de mercadorias. A concorrência capitalista que se instala é, ela própria, um poderoso estímulo na superação do novo pelo mais novo ainda, da técnica em uso por aquela que se intenta produzir.
Benjamin, todavia, não só fica na constatação do progresso naquilo que ele aparenta ser ou na forma tal como se mostra melhor qualidade, maior quantidade, maior rapidez, mas vai ao âmago daquilo que ele oculta. Não se trata apenas de colocar ao consumo das populações que se aglomeram nas cidades grande variedade de mercadorias, mas do processo mediante o qual palavras, pessoas e processos se tornam eles próprios mercadorias.
O sentido é, aqui, mais uma vez aquele empregado por Marx, fetichista e alienador, pelo qual as coisas passam a exprimir algo que não é explícito, ou se travestem de umá aparência que encobre uma essência. Daí, o recurso de Benjamin ao processo de pensar a realidade por meio de alegorias, imagens condicionadas pelo fetiche da mercadoria. Ora, o procedimento de pensar por meio de alegorias é dado quando se recorre a uma imagem sabendo que ela tem um outro significado.
A alegoria é, pois, a representação concreta de uma idéia abstrata, ou ainda o processo de "exposição de um pensamento sob forma figurada em que se representa algo para indicar outra coisa". Segundo Benjamin, é a mercantilização da vida trazida pelo capitalismo de uma forma total e globalizante que faz com que as coisas sejam apreendidas na sua aparência, quando a essência, ou o processo real que Ihes dá nascimento, é encoberta.
Segundo Rouanet: "A intenção de Benjamin era derivar do fetichismo das mercadorias todas as 'fantasmagorias' do século XIX: a da própria mercadoria, cujo valor de troca esconde seu valor de uso; a do processo capitalista em seu conjunto, em que as criações humanas assumem uma objetividade espectral em relação a seus criadores; a da cultura, cuja autonomia aparente apagou os traços de sua gênese, e a das formas de percepção espaço-temporal as fantasmagorias do tempo, ilustradas pelo jogador e pelo colecionadol; ou as do espaço, ilustrada pelos flâneurs".
Inspirado, pois, no conceito do fetichismo da mercadoria, Benjamin recorre às alegorias imagens de representação simbólica do real que assumem forma fantasmagórica da realidade. Ou seja, ainda citando Rouanet, "a fantasmagoria não é uma forma de apreensão do real, mas o próprio real". Ou seja, é a mercantilização capitalista que produz a assimilação da fantasmagoria à própria vivência dos indivíduos, que não apenas sentem e sonham as fantasmagorias como realidade, mas as convertem na sua própria realidade.
Dessa forma, entende-se que tanto a aparência quanto a essência ou o inexprimível são partes integrantes da mesma realidade.
Na sua obra inacabada As Passagens Walter Benjamin pretenderia realizar uma arqueologia da superestrutura cultural do século XIX, tendo como categoria central de análise o conceito marxista do fetichismo da mercadoria. Benjamin, todavia, foi introduzido neste conceito pela obra de Lukács, particularmente nas partes referentes à reificação e à consciência de classe.
Lukács havia retraduzido, em linguagem filosófica, a análise econômica que Marx fizera do fetichismo da mercadoria, e Benjamin pretendeu fazer o mesmo com a cultura na fase do capitalismo triunfante. Foi justamente este aspecto de autonomia que a mercadoria adquiriu em relação ao seu produtor e ao seu comprador o que mais seduziu Benjamin na análise de Marx sobre o modo de produção capitalista. Como refere Tiedmann, interpretando Benjamin: "O destino da cultura do século XIX residia precisamente neste caráter de mercadoria que, segundo Walter Benjamin, se manifestaria nos bens culturais como fantasmagoria”.
A mercadoria, ela mesma, é uma fantasmagoria,quer dizer, uma ilusão, um engano, na medida em que o valor de troca ou forma-valor recobre o valor de uso; o processo de produção capitalista em geral é uma fantasmagoria na medida em que ele aparece como um poder natural dos homens que asseguram a sua realização. Aquilo que as fantasmagorias culturais exprimem, segundo Walter Benjamin, quer dizer, a ambigüidade que se liga às relações e às produções sociais desta época, define o mundo econômico do capitalismo em Marx. É uma ambigüidade que aparece muito claramente com as máquinas que ampliam a exploração em lugar de aliviar a sorte dos homens.
Dessa forma, Benjamin pensa o século XX valendo-se do espetáculo oferecido por Paris naquilo que a modernização tem de mais concreto as passagens, os panoramas, as exposições, as remodelações urbanas, as exposições universais, as novas técnicas e inventos , mas também daquilo que se encontra encoberto e não dito: a dominação do capital sobre o trabalho, os silêncios produzidos na história pela ordem burguesa, as relações sociais subjacentes ao sistema de fábrica, a expulsão dos pobres dos centros das cidades, a defesa da propriedade em nome da ordem, o progresso do capital entendido como o progresso do social, etc., etc.
Nesse sentido, em sua proposta de fabricação-ocultação da realidade, o sistema produz as suas utopias, por meio das quais uma época é capaz de pensar i o seu futuro. Se o progresso foi uma utopia que embalou os sonhos do século XIX, os novos inventos, fruto da aplicação da ciência à tecnologia, adquiriram aos olhos da multidão o status de fantasmagorias, surgidas no mundo moderno para encantar a humanidade.
As "passagens", particularmente, representariam para Benjamin a própria alegoria do século XIX no seu mais puro espírito burguês: galerias cobertas de ferro e vidro, povoadas de lojas, "ruas inteiras" para o transeunte ver as novidades e ser visto, elas se apresentam como uma sociedade burguesa em miniatura, tal como ela gostaria de ser admirada.
O que aparece e se revela é o mundo da circulação, do comércio, da troca; o que se oculta e se retrai para a sombra é o espaço da produção onde, no "silêncio" da fábrica, se realiza a exploração do trabalho pelo capital. Ora, a função da fantasmagoria-fetiche é a transfiguração da realidade, daí o seu caráter ilusório.
Há, contudo, uma ambivalência no julgamento de Benjamin a respeito destas ilusões e imagens enganadoras que a sociedade burguesa se fabrica. "De um lado, é certo que Benjamin sublima na fantasmagoria sua função de transfiguração e de engodo. Mas, de outro lado, ele Ihes encontra igualmente e ao mesmo tempo aspectos positivos: elas são também imagens sonhos da coletividade, elas encerram as demandas utópicas daquelas que as desenvolvem. De certa forma, cada época produz os seus sonhos, mas é na sociedade dominada pelas relações capitalistas e, portanto, pela mercantilização da vida que a dimensão onírica assumiria um papel preponderante.
A história seria, sem dúvida alguma, realizada pelos homens, mas sem plano ou consciência, como se fosse num sonho, em virtude da fetichização. Portanto, as fantasmagorias, categorias benjaminianas que se equivalem ao fetiche da mercadoria de Marx, como imagens produzidas socialmente, funcionam como imagens de desejo coletivo.
Este inconsciente coletivo corresponderia a um correlato, na ordem da imaginação, da reificação no sistema de mercadorias. Nesse sentido, ao analisar a construção do imaginário social do século XIX, há que registrar, para além da dimensão racional ou intencional do engodo e da ocultação fetichizada do processo real vivido, uma outra dimensão: a da projeção do desejo coletivo, das utopias proporcionadas pela própria vivência dos indivíduos na sociedade burguesa em construção. O "efeito-maravilha" da máquina e dos novos inventos leva as pessoas a construírem seus sonhos sobre a realidade, tendo por base aquilo que se quer, que se gostaria que acontecesse e que se espera que um dia possa tornar-se real.
Esta forma de pensar, servindo-se das fantasmagorias, provém de uma percepção mítica do mundo. Refere Rolfjanz que, por uma amarga ironia, o século XIX, herdeiro do século das luzes, da razão e da ciência, que revelou o crescente domínio do homem sobre a natureza, favoreceu e reabilitou formas de representações míticas sobre a realidade. Entende o autor que o pensamento mítico não informa concretamente senão sobre a superfície das coisas e constrói uma interpretação fatalista e inexorável da realidade, como, por exemplo, com as idéias sobre o progresso ou sobre o "eterno retorno", de Nietzsche.
Se o caminho do progresso é a trilha fadada a percorrer por uma humanidade arrastada pelo turbilhão do capitalismo, o mito do "eterno retorno", ou a experiência da "eterna repetição", é recordado por Benjamin pela figura do trabalhador na usina. Condenado a repetir mecanicamente os mesmos gestos e a nunca ver a tarefa encerrada (uma vez que a produção é contínua e o trabalho parcelado, distanciando o operário do produto final), sua personagem é comparada à de Sísifo, também ele condenado a uma tarefa inglória e destinada a não ter fim.
Se tal associação mítica já fora colocada por Engels, a novidade de Benjamin constitui em supor uma similitude entre a situação das classes altas e a das baixas classes sociais. Nessa medida, "[...] a experiência da 'eterna repetição' [...] não fica restrita ao único domínio do trabalho do proletariado. Ela marca igualmente a burguesia e com ela o 'dandy' e o 'flâneur".
Trata-se, sem dúvida, de uma correlação original, estabelecendo que a monotonia do trabalho na usina é comparável ao enfado trazido pela ociosidade. Dessa forma, o sentimento de vazio da existência e o aborrecimento com uma vida sem perspectivas, verdadeira "epidemia" observada na sociedade européia da segunda metade do século XIX, fariam suas vítimas nos dois extremos sociais.
Entende-se que esta percepção benjaminiana de correlacionar os dois pólos da vida social como pacientes de um mesmo processo advém da sua concepção da realidade, vista como um todo global, interligado e, fundamentalmente, perpassado pela idéia-mestra da fantasmagoria encarado sob uma perspectiva dialética. Por outro lado, com o mito da eterna repetição, Benjamin retoma Baudelaire por meio da dialética do novo e do eternamente igual.
É ainda Rouanet que, com propriedade, explica esta ambigüidade: "sua fonte é a mercadoria-fetiche, no duplo sentido de que os artigos produzidos em massa são infinitamente idênticos e de que o seu substrato, o valor de troca, é um agente de homogeneização que permite a infinita intercambialidade dos valores equivalentes, por mais diferentes que sejam os seus valores de uso" .
Benjamin via justamente no acelerado envelhecimento das invenções e novidades brotadas do capitalismo a marca da modernidade. A moda, condenada a se renovar sem cessar, figura como o eterno retorno do novo ao ponto de ser: igualmente, a paródia desta novidade.
Neste sentido, contribui Fabrizio Desideri: "Mas o fundo contra o qual palpita o novo e o fundo do sempre-igual: o tempo vazio onde se constitui a dominação fetichista da forma-mercadoria como espectralidade: auto-envelopante que captura todas as formas do desenho metropolitano. A máscara deste espectro é a fantasmagoria. A modernidade, dominada pela fantasmagoria, tem a imagem do sonho: sua aparência histórica significa aparência onírica".
No seu intento de realizar uma arqueologia da modernidade valendo-se da análise do século XIX, Benjamin se propõe a desvelar o mundo das imagens da burguesia. É claro que essa aguda percepção de conseguir ver o sempre-igual como ilusório e resgatar o novo dos escombros do tempo passado não é tarefa para o comum dos mortais.
Decifrar o mundo burguês implica desvelar a ex-nominação burguesa. Remontando a Barthes, a burguesia se define como a classe social que não quer ser nomeada como tal. Ou seja, como fato econômico, o capital ou o capitalismo são atores explícitos responsáveis pelo progresso e pela sociedade do bem-estar.
Já como fenômeno ideológico, ela não se assume como classe e passa do real à sua representação. Ao universalizar os seus valores para a nação, para a coletividade, a burguesia se ex-nomina e se encobre na "socialização" imposta. Como já foi visto, a coletividade sonha, e ao sonhar acredita como real a imagem que lhe é posta diante dos olhos pelo sistema. A tarefa de despertar compete ao historiador materialista que, apoiado na dialética, é capaz de desfazer o charme do sonho e fazer a humanidade despertar.
A idéia-mestra do progresso, que atravessa o século e oferece aos homens de sua época a crença de que o futuro é uma conquista assegurada, é desta forma posta em discussão por Benjamin, despida do seu caráter mágico de ilusão e revelada em sua ambigüidade. Pensando de forma alegórica, é o vento do progresso que obriga o "anjo da história" a andar voltado para a frente, quando ela tende a voltar-se para trás, resgatando do passado outras propostas, vencidas e não reveladas.
Trata-se, sem dúvida, de uma nova dimensão do tempo que Benjamin inaugura, postulando "escovar a história a contrapelo", segundo a perspectiva dos I vencidos. Mas, ao fazê-loredimindo assim do passado "aquilo que não foi" em razão das forças da dominação, Benjamin desvela os mecanismos do : poder do capital. A fábrica coloca na sociedade não apenas mercadorias produzidas pelo progresso técnico, mas elabora imagens de sonho e desejo que adquirem força de realidade. Dessa forma, Benjamin, de forma alegórica, remonta ao Angelus Novus de Klee para confiar esta missão de decifrar imagens e sonhos ao materialista, histórico, capaz de desvelar a essência da ilusória imutabilidade das aparências.
Da mesma forma, Rouanet coloca nos artistas mais representativos do século  XIX a capacidade de reconhecer "a natureza alegórica da realidade enquanto condicionada pelo fetiche da mercadoria". Uma coisa, contudo, é resgatar o senso crítico presente nas mentes iluminadas dos pensadores que, de uma forma dialética, perceberam as transformações materiais e as social idades do seu tempo e cujo pensamento chegou até nós. Outra é perceber que, de forma acrítica e não consciente, aquele turbilhão de mudanças influiu nos atores sociais anônimos do processo sob a forma de senso comum, de representações mentais e de um imaginário social. Dessa forma, a modernidade do século XIX, tal como eclodiu como percepção aguda por intermédio de seus pensadores mais representativos, ocorreu também como vivência socializada pelo homem comum, que foi portador também destas ambigüidades, perplexidades e percepção de mudança.
Um ponto merece ainda ser ressaltado nas análises de Benjamin sobre a modernidade. No seu "Exposé de 1939" sobre a Paris do século XIX, Benjamin afirma que "Entretanto, este brilho e este esplendor do qual se cercava assim a socieI dade produtora de mercadorias e o sentimento ilusório de sua segurança não estão ao abrigo das ameaças". Benjamin tinha em mente tanto a débâcledo Segundo Império quanto a Comuna de Paris, com o que desfaz a aparente estabilidade da sociedade burguesa.
Nesta medida, Philippe Ivernel distingue dois fios na narrativa de Benjamin nas "Passages": a Paris da burguesia, da moda, da fantasmagoria, das forças míticas da mercadoria, e a Paris das revoltas e das revoluções, "que põe a história na hora da política tanto quanto a política na hora da história".
Este elemento de tensão, presente nas polarizações da riqueza e da pobreza e que já consta da obra de Baudelaire, é o elemento que precisa ser revelado e ser trazido à tona pelo historiador que à semelhança do trapeiro, vai recolhendo fragmentos e cacos do passado. Para Benjamin, não há mais diferença entre este "despertar" produzido pelo historiador e a ação política. A esta altura da análise, o leitor estará se perguntando se a modernidade se resumiria à interpretação ou à leitura que lhe deu Benjamin.
Certamente não. Neste ponto, poderia ser agregada ao princípio dialético presente na experiência histórica da modernidade a idéia da racional idade ocidental. Remontando a Max Weber, mas sobretudo a Hegel, Habermas acentua a íntima relação entre modernidade e racionalidade.
Na sua análise sobre o fenômeno da modernidade, Habermas distingue uma dimensão cultural, marcada pela dessacralização das visões do mundo tradicionais, e uma dimensão social, identificada por complexos de ação autonomizados (o Estado e a economia), que escapam crescentemente ao controle consciente dos indivíduos através de mecanismos anônimos e transindividuais (processo de burocratização). Embora empenhado em estabelecer uma teoria crítica sobre a sociedade, Habermas não sucumbe ao peso da identificação castradora da modernidade social sobre a modernidade cultural. Acredita na possibilidade de uma racionalidade comunicativa que, vinculando o mundo objetivo dos fatos, o mundo social das normas e o mundo subjetivo dos sentimentos, restaura as potencialidades libertadoras da modernidade como experiência histórica não acabada ou falida. Nesse sentido a modernidade é marcada pela consciência da aceleração do presente e a expectativa da heterogeneidade do futuro, o que aproxima as suas idéias às noções já levantadas de uma expectativa de mudança e sensação individual e coletiva de viver num mundo em transformação.
Por outro lado, sob uma outra perspectiva, Habermas também pensa o moderno como uma nova temporalidade, marcada pelo primado da razão, ao admitir que a modernidade "não pode nem quer tomar seus critérios de orientação de modelos de outras épocas, tendo de extrair sua normatividade de si mesma".
Na aventura da modernidade e os contraditórios caminhos do progresso, a modernidade tem sido tratada por vários autores, que lhe atribuíram diferentes tempos e sentidos.
Para Heidegger, ela teria iniciado com Descartes, na sua busca de um saber totalizante, absoluto; para Habermas, com Kant; para Sartre, com a geração literária de 1850. Em relação às artes, o seu início teria sido o Romantismo, como apontou Baudelaire, os impressionistas das décadas de 70 e 89, ou ainda ela teria seu ponto de partida no início do novo século, com as Demoiselles d'Avignon, de Picasso. Múltipla, polifacetada, contraditória, descontínua, como experiência vital, ela pressupõe mais de um olhar.
Resguardado o direito de opção e de busca de articulação entre as dimensões culturais com as condições concretas de existência, o fio condutor desta análise é o que situa a modernidade na senda da constituição do capitalismo. Assim, a base teórica desta análise é a que vai de Marx a Benjamin, ou, em outras palavras, a que trabalha com a fetichização do mundo e a transfiguração alegórica da realidade. A produção de um imaginário coletivo, traduzido em idéias-imagens da sociedade global, pode ter ou não correspondência com o que se poderia chamar de verdade social, uma vez que ele comporta utopias e, em condições capitalistas da existência, liga-se ao princípio de mercantilização da vida.
Este processo tende a configurar-se de forma sensível no século XIX, tomando-se: por base a Europa Ocidental, no momento em que triunfava o sistema de fábrica como a forma histórica mais adequada à realização da mais-valia, da elevação da produtividade, da consolidação, da dominação burguesa, do adestramento operário à disciplina do trabalho. E ainda o advento do capitalismo o elemento que possibilita o desenvolvimento do pensamento racional que, por sua vez, é responsável também pelo avanço da ciência e de sua aplicação à técnica. Nesse contexto, a modernidade é um fenômeno do domínio da cultura, da expressão do pensamento, das sensações, das mentalidades e da ideologia. Sua base nascedoura é a transformação burguesa do mundo, que dá margem a um novo sentir e agir. Neste mundo dominado pela fantasmagoria, o espetáculo da modernidade armaria o próprio palco para demonstrar a exemplaridade do sistema: as exposições universais.

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