sábado, 3 de julho de 2010

A casa brasileira

Marcos Simão
Trata de um pequeno ensaio sobre a casa brasileira, a relação com seus moradores e estilos de vida em períodos diferenciados na história, com ênfase na relação dos espaços e seus usos e na forma como a vida cotidiana influenciava na concepção desses espaços de moradia)
A casa brasileira na segunda metade do século XIX:
A casa da cidade não era um lugar atraente: as cocheiras e as cavalariças ficavam no primeiro andar, enquanto que a sala de visitas, as alcovas e a cozinha ficavam no segundo. Não raro existia uma pequena área ou pátio ocupando o espaço entre a cocheira e a cavalariça, e esse espaço separava, no segundo andar, a cozinha da sala de jantar.
Há, entretanto, diferentes classes sociais no Brasil, como em qualquer outro país, assim descrição de uma casa não pode servir para das outras classes.
A gravura junto representa uma das mais velhas residências de cidade no Rio, o acesso à escada se dá por uma grande porta pela qual a carruagem entra barulhentamente, nos dias de festa e dias santos. À noite é fechada com grades de ferro, das dimensões das que são usadas nas prisões. Todos os seus ferrolhos, trancas, fechaduras, ou outro qualquer gênero de ferragem, parecem ter sido trazidos da seção pompeana do museu Bourbônico de Nápoles. As paredes, compostas de blocos de pedras, cimentados por argamassa comum, são tão espessas como as de uma fortaleza.

O mobiliário da sala de visitas varia em preço, de acordo com o estilo adotado; mas, o que se pode sempre esperar encontrar é um sofá forrado de palhinha, a um canto da sala e três ou quatro cadeiras arrumadas em filas rigorosamente paralelas, estendendo-se de cada uma das pontas do sofá até o meio da sala. Em sociedade, é próprio as senhoras ocuparem o sofá, e os cavalheiros as cadeiras.
As residências urbanas, nas velhas cidades, pareceram-me excessivamente tristes, porém o mesmo não pode ser dito das novas residências urbanas, das lindas "vilas" suburbanas, cercadas por jardins, cobertos de folhagens, muitas flores e frutos pendentes. Alguns trechos de Santa Teresa, Laranjeiras, Botafogo, Catumbi, Engenho Velho, Praia Grande e São Domingos, não podem ser ultrapassados na beleza e pitoresco de suas casas.
Cheiro composto de sexo, de urina, de pé, de sovaco, de barata, de mofo...
A arquitetura brasileira urbana da primeira metade do século XIX praticamente manteve o mesmo programa, das formas de morar dos séculos XVII e XVIII.
Morada inteira ou meia morada, constituíam os dois tipos básicos de casas. Filas contínuas de casas, situadas no alinhamento das ruas, retângulos conjugados, uma sala na frente outra atrás, unidos por um longo corredor com quartos só de um lado ou dos dois. Portas voltadas para esse corredor e para as salas. Janelas laterais, nunca. Janelas, só as da frente da casa.
Esquema simples de reproduzir, que atravessou todo período colonial. Paredes grossas, telhados de duas águas e alcovas, camarinhas ou quartos, que sem ventilação nem luz, eram escuros e mofados, lugar onde "dormia-se com as portas e janelas da casa trancadas... de modo que o quarto de dormir impregnava-se de um cheiro composto de sexo, de urina, de pé, de sovaco, de barata, de mofo... Quando a inhaca era maior queimavam-se ervas cheirosas dentro dos quartos".
Dois outros espaços eram também apontados como os mais insalubres das casas: as cozinhas e os desvãos das escadas.
As cozinhas das casas térreas eram locais funestos, por causa da fumaça que produziam. Já nos sobrados de vários andares, 4 até 6, a cozinha ficava no último andar, justamente para evitar a fumaceira permanente. Observando uma planta em corte/perfil de um sobrado, vê-se a ocupação dos seus andares. Pode parecer estranho que em um tempo onde não havia água encanada, a cozinha estivesse no último andar. Mas isso não era problema, porque havia o escravo, para cima e para baixo, a carregar lenha, água, lixo.
Como também não havia banheiro dentro de casa, usavam-se os Tigres, os grandes barris onde se colocavam todo o cocô e o xixi produzido pelos moradores, nos penicos. Esses Tigres eram em geral postos embaixo das escadas, a "perfumar" o ambiente. Só à noite era permitido que fossem retirados das casas e seu conteúdo era jogado nos quintais, nos rios, no mar. Havia também as "casinhas", local onde se faziam as necessidades, mas ficavam afastadas da casa, nos quintais.

O banho era tomado em gamelas ou tinas de madeira, com água das cacimbas que existiam nos quintais de algumas casas, ou água comprada na porta aos aguadeiros.
Não só dentro de casa, mas na própria cidade havia grandes problemas com relação à salubridade. O lixo, por exemplo, foi sempre um caso mal resolvido. Os bichos, porcos, cabras, cavalos, bois, andavam soltos pelas ruas, a sujá-las continuamente. E pior, a maioria das ruas não tinham, calçamento, e tudo virava lamaçal, principalmente em dias de chuva. Sujeira e mau cheiro. Ruas intransitáveis. As barras dos vestidos das mulheres sempre sujas. Até as águas caíam de vez, do telhado das casas, diretamente nas ruas, piorando a situação.
Pouco a pouco, porém, com as Legislações Urbanas e as Posturas Municipais, que determinavam padrões construtivos e normas para melhorar a vida nas cidades, é que as coisas foram se transformando.
Bichos soltos nas ruas passaram a ser proibidos a, a água do telhado tinha que descer até o chão por uma calha e passar a ser escoada para uma canaleta no meio fio. Mas tudo isso foi ocorrendo muito vagarosamente.
Somava-se aos problemas internos de higiene das moradias urbanas, a forma incivilizada com que os habitantes se comportavam com relação ao espaço público: nas ruas se despejavam também os restos domésticos, do bicho morto, às águas servidas, do retraço de lenha dos fogões ao conteúdo dos penicos, e as ruas continuavam emporcalhadas e intransitáveis.
Peculiaridade das Casas do Recife no Século XIX
Muitas das casas de Pernambuco são construídas em estilo desconhecido em outras localidades do Brasil. A descrição de uma dessas casas serve de amostra do referido estilo.
Tinha seis andares. O primeiro, ou andar térreo, denominava-se armazém, e, à noite, era ocupado pelos empregados do sexo masculino; o segundo serve de instalação para o escritório, etc.; o terceiro e o quarto contém as salas de visita e os quartos de dormir; o quinto, as salas de refeição, e o sexto a cozinha. Os leitores habituados com os assuntos domésticos perceberão a vantagem especial de se ter a cozinha localizada no sótão pela tendência que têm para subir a fumaça e as diversas emanações produzidas pelas operações culinárias. Há no entanto uma desvantagem inseparável desse dispositivo, que é a necessidade de se tranportar várias coisas pesadas subindo tantas escadas. A água, por exemplo, que na falta de qualquer mecanismo que a possa elevar, tem que ser carregada na cabeça dos pretos. Qualquer um compreenderá que um pequeno descuido, no equilíbrio das vasilhas d’água assim transportadas, expõe as partes inferiores da casa ao perigo de serem inundadas. Dominando o sexto andar e constituindo, de certa forma o sétimo, existe um esplêndido observatório, de onde se pode contemplar o alto do céu em todas as direções.
A vista desse observatório é ampla e interessante ao extremo. É o melhor lugar donde um estrangeiro pode observar para ter uma correta impressão da situação e das redondezas da cidade. Seus olhos, de um posto de observação tão alto, não deixarão de dirigir-se com o maior interesse para a ampla baía de Pernambuco, estendendo-se, com moderada e regular curvatura da costa, entre o promontório de Olinda e o cabo de Santo Agostinho, trinta milhas abaixo. Essa baía é geralmente adornada de numerosas jangadas, que, com suas largas velas latinas, não fazem um medíocre efeito. Além do comércio do próprio porto, surgem no alto mar navios vindos de distantes pontos, quer do norte quer do sul. Não há porto de mais fácil acesso. Um navio, proveniente do Oceano Índico ou do Pacífico, ou de regresso à pátria, dirigindo-se para os Estados Unidos ou para a Europa, pode, com um simples desvio de sua rota principal, entrar no porto de Pernambuco. Pode alcançar o ancoradouro do Lameirão, ou porto externo, e entrar em comunicação com a terra, quer para obter notícias e avisos quer reabastecimento, e continuar a sua viagem à vontade, sem precisar sujeitar-se às exigências portuárias. Isso é de grande conveniência para os baleeiros e mercadores dos mares do sul. Para descarregar ou receber água, os navios devem entrar no interior do recife e conformar-se com os costumeiros regulamentos dos portos.
Os navios de guerra raramente se demoram aqui. Nenhum de grande tonelagem pode transpor a barra, e os que o podem vêem-se obrigados – provavelmente por causa do perigo de acidentes quando estão muito próximos da cidade – a depositar na fortaleza a sua pólvora. Poucos comandantes se mostram desejosos de sofrer uma tal obrigação, e também o seu ancoradouro no Lameirão não pode oferecer garantias de tranqüilidade e segurança. Os fortes ventos e as pesadas ondas do oceano são freqüentemente suficientes para romper os mais resistentes cabos. São razões bastantes para que Pernambuco não seja uma preferida estação naval quer para o Brasil quer para as demais nações. O ancoradouro comercial está inteiramente sob as vistas do nosso observatório, porém muito próximo e densamente acumulado de embarcações para constituir um imponente conjunto.
As grandes reformas nas moradias
A mentalidade, a idéia de deixar entrar a luz, correr o vento e o ar, foi resultado das grandes reformas urbano-sanitárias realizadas na Europa, no final do século XIX, cujo objetivo era dar às cidades grandes espaços salubres, em substituição aos cortiços medievais que existiam nas principais delas, que as tornava, cidades doentes. O mais famoso engenheiro que influenciou com suas ações os processos de urbanismo no mundo inteiro, chamava-se Haussmann. Ele praticamente demoliu meia Paris, deixando os monumentos e cortando a cidade com largas e monumentais avenidas, copiadas depois em todos os lugares.
E as casas brasileiras já no início do século XX, sofreram também influência de toda essa nova mentalidade que espalhava-se pelo mundo, onde a questão sanitária era vista com especial cuidado para permitir a própria sobrevivência.
O lote urbano passou a ter casas geminadas de um lado só e mais tarde soltas dos dois lados. A casa recuou e passou a ter jardim. O porão passou a ser um elemento essencial delas, mesmo nas casas térreas, quando não eram afastadas do paramento das ruas, visando proteger o interior do olhar dos transeuntes.
Com a escassez e depois com a abolição dos escravos, mudaram também os padrões arquitetônicos das residências.
O trabalho remunerado, com o início da imigração européia, também contribuiu para que se aperfeiçoassem as técnicas construtivas.
O que realmente mudou a vida das pessoas e das casas foi a implantação dos serviços de água e esgoto no interior das moradias. No início bem precários, contudo, dispensavam o uso dos serviços dos escravos, era o progresso tecnológico. Todo construído à base de produtos importados, canos, latrinas, torneiras, banheiras. Aperfeiçoar os hábitos higiênicos era meta de todos, apesar do esforço econômico e de mudanças de hábitos para acompanhar as inovações tecnológicas permanentes.
E um dos grandes benefícios dessas inovações foi a invenção do banheiro. O banheiro como existe hoje, com aparelho sanitário e box para tomar banho foi introduzido nas casas já ao final do século XIX, o "banheiro dotado de um sólido ferrolho, onde o corpo nu pode começar a experimentar sua mobilidade a salvo de qualquer intromissão. Este espaço... transforma-se no templo ‘clean and decent’... da contemplação de si próprio".
A casa embeleza-se. Valorizam-se os interiores com enfeites e mobiliários importados. Bibelôs, jarros, pratos, escarradeiras. Janelas e portas construídas para o exterior. Quartos claros e ventilados. Bandeiras de ferro em cima das portas, enfim, "A Revolução Industrial clareou tudo. As casas passaram a ser iluminadas, com muita luz do sol".
O vidro plano e transparente passou a ser um dos elementos mais usados das janelas e os balcões de ferro fundido, nas varandas.
O gosto era o Ecletismo e havia de tudo, tudo o que fosse moderno e importado da Europa, sobretudo da França, de onde vinham os enfeites, para os ricos senhores do café.
A casa do Final do século XX e início do século XXI -  Minha casa, meu trabalho
Uma tendência que, em verdade, está deixando de ser apenas uma tendência e para se tornar uma realidade. Uma reportagem da Veja (09/05/2001) deixa isso bem claro, a revolução no interior das casas brasileiras, que deixam de ser apenas moradias para se tornarem também local de trabalho. Segundo a reportagem, antes, bastavam uma mesa, uma cadeira, um abajur e prateleiras. Estava pronto o escritório doméstico, encaixado num canto qualquer do quarto ou da sala. Com a valorização do trabalho em casa nos últimos anos, esse espaço conquistou vida própria e já atende pela pomposa alcunha de home office. Aos poucos, deixa de ser um luxo reservado a profissionais endinheirados para se transformar em presença quase obrigatória nos projetos arquitetônicos de casas e apartamentos destinados à classe média. Especialistas da área imobiliária estimam que em breve ele será tão essencial quanto o banheiro e os quartos – muitos prédios já estão saindo da planta com espaço para o escritório. Pode-se atribuir a mudança a uma série de fatores: a separação entre a atividade na empresa e a vida familiar não é tão rigorosa quanto antes, as tecnologias de comunicação incentivam o trabalho a distância e os computadores se incorporaram de vez à rotina das residências.
Na esteira dessa tendência, os profissionais da prancheta vêm recebendo um número crescente de encomendas para projetar e acompanhar a instalação de home offices, um lugar que deve ser funcional, mas acima de tudo agradável e confortável, com a virtude adicional de ocupar área reduzida. "O fundamental é que não lembre nem um pouco os escritórios convencionais, aonde você é obrigado a ir todos os dias", define a arquiteta e decoradora Brunete Fraccaroli, uma das mais requisitadas de São Paulo, ela própria uma adepta da alternativa desde que a filha de 16 anos era recém-nascida. Segundo Brunete, não é nem mesmo necessário reservar um cômodo inteiro para instalá-lo, exceto para profissionais que trabalham o tempo todo na residência, o que exige privacidade para receber clientes e distância da balbúrdia familiar. Ainda assim, a decoração deve ser bem mais descontraída que a encontrada nas empresas, já que levar para casa aqueles móveis quadrados, frios e sem graça é uma alternativa impensável.
A tendência de derrubar as paredes, fundindo vários ambientes em um só, permite que o escritório seja compartilhado com a sala de estar, o quarto ou até mesmo a cozinha. "Falta de espaço deixou de ser desculpa para não ter um escritório em casa"(...).
Por força das mudanças comportamentais adivindas da era da informação, o arquiteto carioca Maurício Nóbrega batizou o cômodo formado pela fusão do escritório com outras partes da casa de "sala da família", área ideal para o convívio dos pais com os filhos. "Esse lugar assume o papel de ponto de encontro das gerações, que durante muito tempo foi da sala onde ficava a televisão". O novo conceito de escritório doméstico pressupõe a democratização desse espaço, tido até então como o lugar em que o chefe de família se refugiava quando tinha problemas sérios a resolver. O moderno home office é ocupado tanto pelo marido quanto pela mulher e filhos, cada um envolvido em seus afazeres. "Essa mudança se deve à popularização do computador, um equipamento que é compartilhado por todos e faz com que o local em que está instalado também seja dividido", (...)

Fonte: Revista Veja - Edição 1699 - 9 de maio de 2001
É fácil perceber que a casa (a nossa casa) jamais será como foi compreendida até então, os novos rumos da sociedade pós-moderna, provocaram, também, uma ruptura no conceito de viver, morar, trabalhar e se divertir. Alguns acreditam que num futuro bem próximo não será mais necessário sair de casa para nada. Na verdade isso já ocorre em parte.
Bibliografia
KIDDER, D. P.; FLETCHER, J. C. O Brasil e os brasileiros; esboço histórico e descritivo. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1941, v.2. Biblioteca Pedagógica Brasileira, Série 5ª, v. 205-A
LIMA, Herman. Roteiro da Bahia. Rio de Janeiro, Serviço de Documentação do Ministério da Educação e Saúde, 1953. Os Cadernos de Cultura
RIEDEL, Diaulas (org.). Histórias e paisagens do Brasil; o sertão, o boi e a seca. 2ª ed. Editora Cultrix
LUBATTI, Maria Rita da Silva. O folclore na vivência atual de Açu, Marreca e Quixaba, Campos. Escola do Folclore, Editorial Livramento, 1979
VEJA, Revista Edição 1699 - 9 de maio de 2001
Neufert, Ernest, Arte de Projetar em arquitetura, 2ª edição - Tradução da 21ª  edição Alemã, Editora Gustavo Gili do Brasil, São Paulo-SP.

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