segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Aspectos da pobreza em velhos sobrados do centro do recife: aportes para uma discussão

Vera Borges de Sá
Resumo: Objetiva comparar características da pobreza das habitações coletivas do século XIX, especialmente dos sobrados encortiçados ou casas de cômodo, com aspectos atuais dessas moradias ainda hoje dominantes no centro do Recife. Descreve aspectos sóciodemográficos e o processo de urbanização dos bairros centrais da Recife, os primeiros que deram origem à cidade, mostrando que tem havido uma queda na densidade demográfica daquele espaço. A partir de autores como Gilberto Freyre, Antônio Paulo Rezende e José Antônio Gonsalves de Mello reporta-se à origem do cortiço, ao processo de urbanização holandês em Recife e suas influência no adensamento da população e visibilização das condições de vida dos sobrados. Afirma que a literatura que aborda sobre moradias coletivas no Brasil não produziu um conceito satisfatório sobre o que significa de fato "cortiço". Finalmente, apresenta breves trechos de discursos de moradores de um velho sobrado encortiçado no centro do Recife, sobre as motivações que os levaram a residir nesse tipo de habitação. Baseada na ótica de Milton Santos, defende que a essência do espaço não é a construção e sim o social.
1. Características dos Bairros do Centro do Recife
Os bairros centrais do município do Recife, são os locais onde se encontram vários cortiços e casas de cômodo ensobradados. Esses bairros são o de Recife ( mesmo nome da capital), Santo Antônio, São José, Boa Vista, Ilha do Leite, Soledade, Paissandu, Cabanga, Joana Bezerra, Santo Amaro e Coelhos. São os mais antigos da Cidade porque se originaram de um núcleo urbano primitivo no Porto do Recife.
Os bairros de Recife e Santo Antônio, formam o locus embrionário da expansão da cidade acontecida entre a segunda metade do século XVI e a primeira do século XVII. Até pouco antes da invasão holandesa acontecer, em 1630, o estabelecimento da moradia era Olinda para o povo da Província de Pernambuco. Instalados em Recife, por razões hipotéticas que são apontadas como, por exemplo, o fato de Olinda não favorecer ações militares pela topografia acidentada de morros e por possuir impedimentos comerciais portuários, ou ainda pela semelhança do Recife com as terras da Holanda, importante a ressaltar é que essa cidade foi sendo ocupada em seus espaços por soldados, colonos, habitantes de Olinda e imigrantes judeus.
O processo de intervenção holandesa foi determinante na urbanização da parte central do Recife com a construção de pontes e redutos para impedir ataques por terra, além de ação planejada urbanisticamente feita por Pieter Post, encomendada por Maurício de Nassau e executada na Ilha Antônio Vaz ( hoje, bairro de São José). Esse processo de urbanização primeiramente seguiu em direção ao norte do Bairro do Recife, sentido de Olinda nas imediações em que hoje se encontram a Fortaleza do Brum e a Fábrica Pilar; também atravessou o Rio Capibaribe e ocupou parte da Ilha Antônio Vaz, atualmente bairros de Santo Antônio e São José. No governo holandês foram construídos ainda o Forte das Cinco Pontas e a ligação por dique deste forte ao Aterro dos Afogados, cuja área hoje é identificada como Rua Imperial.
A partir dos holandeses o bairro denominado Recife foi se especializando como centro comercial, onde havia circulação de mercadorias em função da presença do porto e dos judeus comerciantes. Surgem, assim, os sobrados com o comércio localizado no térreo e a moradia nos andares superiores. A especialização do centro em setor de serviços e bancário, cada vez mais vai estimulando os residentes de sobrados a deixarem o centro com local de moradia, o que em parte favorece a deterioração dos imóveis, o aumento dos cortiços e das casas de cômodos.
Essa perda de moradores proprietários de residências é algo que se constata no exame da densidade demográfica da Região do Centro que vem se reduzindo nas últimas décadas. Segundo o IBGE , em 1980 a população era de 89,7 mil pessoas, em 1991 era 83 mil. na Região do centro como um todo. A taxa de crescimento foi de - 0, 71% ao ano, ao contrário da taxa de + 0,69% registrada para a cidade do Recife que cresceu em população de 1.203 mil habitantes para 1.298 mil em 1991. Quanto aos níveis de renda, as tabulações especiais do censo demográfico do IBGE em 1991, mostram que há contrastes entre a renda média de um indivíduo que mora no bairro da Ilha de Joana Bezerra e a daquele que mora no bairro do Paissandu. Neste bairro, a renda é 11,7 vezes mais do que a renda de um habitante da referida Ilha. A do bairro da Boa Vista é 10 vezes maior que a do bairro da Ilha Joana Bezerra e 5 vezes mais que a renda de um habitante dos Coelhos. Já a população do bairro do Recife possui renda muito baixa, tal qual a dos Coelhos. E a renda do bairro de São José, que até a década de 40 era habitado pela classe média, hoje é um pouco inferior à renda desses últimos bairros. Em resumo, as condições de renda da população residente dos bairros centrais do Recife, podendo-se afirmar que vivem em pobreza relativa.
Do ponto de vista da infra-estrutura, os bairros centrais do Recife possuem condições de saneamento e de encanação das mais antigas por serem os primeiros bairros do Município, sendo privilegiados nesse aspecto. Sobre o abastecimento de água para o Recife é de 92, 99% para seus municípios. Dos 23 mil domicílios registrados em 1991, 17 mil, 73%, tinham acesso a água através da rede geral e com canalização interna. 3 mil tinham acesso a água sem canalização interna e outros 3 mil adotavam outra alternativa. O bairro do Recife, diferentemente dos outros, possui apenas 11% de ligações domiciliares e possui grande parte de seus moradores residindo em prédios antigos encortiçados. O bairro de Santo Antônio possui 43% de seus domicílios com abastecimento de água. Melhores condições de rede geral e canalização interna estão nos bairros da Boa Vista, Cabanga, Ilha do Leite, Soledade e Coelhos para 80% dos domicílios. O sistema de esgotamento sanitário é do tipo tradicional. Somente um terço dos domicílios da cidade do Recife têm seus esgotos coletados. Os bairros do centro em 1991 tinham 56,12% de seus domicílios ligados a rede geral de esgotamento sanitário ou com fossas sépticas. A precariedade está no bairro do Recife que possui apenas 4,6% de domicílios com esgotamento sanitário. Os bairros mais bem servidos de instalações sanitárias são os da Boa Vista, Santo Antônio e Soledade, em torno de 90%.
2. O Encortiçamento dos Sobrados no Recife
Os cortiços no Recife constituem habitações em que o cotidiano da vida de seus moradores e sua inserção na pobreza urbana continuam sem merecido estudo sociológico. Essa moradia reflete a colonização holandesa no século XVII em Pernambuco na construção de sobrados urbanos que sobrepujaram a casa grande e a senzala da área rural, mas se transformaram em cortiços. Segundo Gilberto Freyre, os cortiços aparecem com a maior urbanização do País, como sobrados em ruínas, sendo preferidos pelo proletariado estes, aos mocambos, que eram espécies de habitações cobertas com palhas de coqueiro ou palma. A origem do cortiço é atribuída ao Recife holandês. Esse período é considerado por Sérgio Buarque de Holanda e pelo próprio Gilberto Freyre como o primeiro momento do Brasil colonial a sedimentar um processo de urbanização e modernidade na vida de gente da colônia com hábitos agrícolas de influência portuguesa. A presença dos holandeses faz o Recife possuir, naquele momento, preocupações comerciais dominantes sobre às de ordem militar. A urbanização levada adiante pelo período nassoviano muda a paisagem do Recife com suas construções e centralidade no comércio, atraindo trabalhadores de toda espécie e, contando com as condições topográficas que favoreciam comprimir a população crescente em habitações verticalizadas em sua arquitetura.
Segundo José Gonsalves de Mello, o Recife era um simples burgo no século XVII completamente tomado por mangues e alagados. Burgo de marinheiros e de gente ligada ao serviço do porto; triste e sem vida própria para onde até a água tinha de vir de Olinda, quando os holandeses decidiram transformar em núcleo urbano com perfil de modernidade. A população civil do Recife e adjacências na época de Nassau, era de aproximadamente de 5 mil pessoas. Com uma área de 100.000 m2 e uma população, somente no Recife, de 2.700 pessoas e alto índice de densidade demográfica, viveram-se aí problemas de moradia onde a construção de sobrados constituíram-se numa alternativa.
O historiador Antônio Paulo Rezende ao analisar os aspectos do crescimento e da modernização da cidade do Recife no século XIX e no início do século XX, esclarece que as condições de vida precárias ameaçam a estrutura demográfica das cidades e atingem negativamente o bem-estar da maior parte da população, especialmente os pobres que vivenciam a insalubridade e as doenças. Segundo o Autor, várias cidades no começo de sua industrialização, registraram altos índices de doenças como varíola, febre amarela e tuberculose, que foram acontecimentos praticamente do século XIX na Europa. Sem esquecer ainda o adensamento populacional que vai tornar a questão da saúde pública algo de fundamental importância para a cidade moderna, como no caso de Londres no início do século. O interessante em Recife é que essa cidade já vivenciava tais aspectos desde o século XVII, ao tempo da invasão holandesa quando houve crescimento repentino de sua população numa área bastante restrita.
Habitação, condições de vida e saúde possuem laços estreitos de influencia numa cidade para onde acorrem número crescente de migrantes. As condições de vida da população não favoreciam a implantação de programas de saúde que tinham as pretensões de obter cem porcento de sucesso na tentativa de modernizar a cidade do Recife, a todo custo. José Lins do rego, citado por Rezende ( 1997, p. 48) descreve a moradia de uma pessoa pobre no Recife, narrando que um masseiro, a mulher e quatro filhos dormiam numa tapera cujas paredes eram de caixão e cobertas de zinco, custando a essa família um aluguel de doze mil réis por mês. A água do mangue entrava na casa quando a maré enchia, os maruins mordiam as crianças na dormida pela noite, e os urubus viviam por perto em busca de restos de comida. Os caranguejos eram aquilo que alimentava seus moradores , sendo essa a única vantagem de morar no mangue.
No sobrado, as condições de higiene no século XIX não eram boas. O problema do destino das "águas servidas" era grave, pois era usual despejá-las de varanda abaixo sobre a cabeça de qualquer um que por ali estivesse passando por baixo do sobrado. Mario Sette , conta-nos que em 1831 uma posição municipal determinava que ninguém derramasse essas águas que não fosse à noite e repetindo um aviso prévio três vezes seguida: Água vai! Água vai! Água vai! Além de ser multado em 4$000 e pagar uma indenização pelos prejuízos causados. Mesmo assim, banhos malcheirosos continuavam a virem dos sobrados.
Mas é no século XIX que os cortiços são percebidos por higienistas e literatos, exatamente pela sua quantidade e forma de vida ali deflagrada. Em 1871, no Rio de Janeiro imperial dados do médico Correia de Azevedo, citado por Gilberto Freyre, chamava atenção para os erros sobre a ventilação e a umidade, estreiteza dos cômodos, etc. Erros coloniais cometidos nas construção das habitações da cidade e que facilitavam a vida subumana , especialmente nos cortiços. A quantidade de Cortiços no Rio de Janeiro em 1869 era de 642 com 9.671 quartos habitados por 21.929 pessoas; 13.555 homens e 8.374 mulheres; 16.852 adultos e 5.077 menores. a porcentagem dos cortiços era de3, 10% e a sua população de 9,655 elevando-se em 1888 a 3,96% e 11,72%. No Recife os sobrados de três andares tornaram-se comuns desde o século XVII, como um meio das casas continuarem grandes e satisfazerem muitas das necessidades patriarcais sem se espalharem para os lados. em salvador , no Rio de Janeiro , na capital de São Paulo, em Ouro Preto, os sobrados parecem ter variado entre um e dois andares, alguns indo a três, no Rio de Janeiro raros a quatro ou cinco, na Bahia; no Recife é que chegaram a cinco e até seis andares. Contudo interessa menos a estrutura física desses espaços do que a compreensão do que significam as pessoas que habitam esse território feito de discriminações e de segregação como se aí fosse um outro mundo dentro da cidade. É necessário perceber o espaço como o lugar que interfere diretamente no valor de cada indivíduo. Para Milton Santos, a essência do espaço é social e este não é apenas formado pelas coisas e objetos geográficos, naturais e artificiais, cujo conjunto nos dá a Natureza, é tudo isso , mais a sociedade. (Milton Santos, citado por Rubens de Toledo Júnior).
Pelas moradias dos principais centros urbanos no Brasil,, do final de século XIX e início do século XX pode-se verificar que são as classes populares aquelas que foram ocupando os espaços irregulares da cidade. Segundo Maria Cristina Cortez Wissenbach os tipos de habitações característicos dessa época eram cortiços, pensões, casarões plurifamiliares que possuíam alta densidade demográfica habitados por uma mistura de tipos sociais e de nacionalidades distintas. A concentração , o viver em conjunto em exíguos espaços , era o elemento mais característico da vida na cidade .
No Rio de Janeiro as alternativas de moradia das classes populares eram as habitações coletivas, as casas de cômodos, as estalagens e os cortiços, nas ruas da Cidade Nova, Gamboa, Saúde, Frei Caneca, etc. Nessa cidade assim eram os cortiços: "pequenas casinhas de porta e janela, alinhadas, contornando o pátio, são habitações separadas, tendo a sua sala da frente ornada por imagens de santos e anúncios de cores gritantes , sala onde se recebem visitas, onde se come, onde se engoma, onde se costura, onde se maldiz dos vizinhos, tendo também a sua alcova quente e entaipada , separada da sala por um tabique de madeira , tendo mais um outro quartinho escuro e quente onde o fogão ajuda a consumir o oxigênio, envenenando o ambiente. dorme-se em todos os aposentos". ( Backheuser, citado por Maria Cristina Wissenbach). Em São Paulo, em 1893, também se encontravam cortiços que ocupavam o interior dos quarteirões. Eram pequenas unidades de 3 pr 4 ou 5 metros de tamanho, construídas em torno de um pátio central em que havia a torneira, o banheiro e tanques coletivos. No interior da unidade distinguiam-se a sala e o pequeno espaço para dormir, porém sem ventilação .
Mas no Rio de Janeiro, em São Paulo e Recife as populações pobres habitaram também sobrados no início do século XIX. Eram casarões deixados por seus proprietários que foram residir em bairros mais afastados do centro da cidade, longe das epidemias e da desordem urbana. Nesses locais reuniam-se trabalhadores e ociosos, homens e mulheres estigmatizados e excluídos socialmente da possibilidade de desfrutar das condições de bem-estar social e estrutura de emprego, formal digna de reproduzir as condições básicas de sua força de trabalho.
3. A Dificuldade de Conceituação. O Sobrado é uma Casa de Cômodo ou um Cortiço?
June Hahner ao analisar a situação dos pobres urbanos no Brasil no período de 1870 a 1920, sobretudo em São Paulo e no Rio de Janeiro, afirma com propriedade que os termos exatos para os diferentes tipos de moradia urbana não são sempre claros ou comparáveis. Essa autora nos oferece um breve panorama sobre as já formuladas caracterizações sobre cortiço, casa de cômodo e estalagem.
Baseando-se no Relatório da Associação Imperial Typographica Fluminense de 1863, periódicos da época impressos no rio de Janeiro, Hahner afirma que o termo cortiço, comum no século XIX, designava conjuntos habitacionais antigos. Eram descritos como sobrados levantados ao redor de um pátio interno apertado, onde ao andar de cima, só se chegava por escadas íngremes. Lá figurava uma varanda sem segurança alguma. Os quartos de dormir eram quentes, pequenos e escuros pela falta de ventilação e onde a família ficava aglomerada.
As "casas de cômodo" eram considerados piores. Ou seja, eram mansões de vários andares cujos donos haviam se mudado do centro para zonas residenciais mais novas, e foram transformadas em habitações superpovoadas de quartos e cubículos alugados. segundo a Autora, o esforço dos locatários para dividir o espaço o máximo possível fazia com que alguns quartos chegassem a medir 0,91 centímetros de largura por 9,40 cm de comprimento entalhados em vãos de escadas, depósitos, corredores, cozinhas e mesmo banheiros, tudo para fazer áreas de dormir. Os quartos recebiam luz e ventilação indiretamente. Cada latrina comunitária era utilizada por dúzias de pessoas e as áreas do banho eram escassas. Famílias ou grupos de indivíduos de ambos os sexos dormiam cozinhavam seu alimento em diminutos fogões a gás ou querosene e lavavam suas roupas tudo no mesmo quarto
Havia ainda as hospedarias, estalagens, casas de dormidas, hospedarias e hotéis que alugavam camas para dormir e não apenas quartos.
O censo nacional de 1890 e de 1906 considerava o número de pessoas vivendo em habitações coletivas. O de 1890 tomava como habitação coletiva as estalagens, enquanto o de 1906 listava estalagem e moradias coletivas como dois termos distintos.
Percebe-se a necessidade de realização de pesquisa empírica sobre os sobrados no Recife que leve em consideração as condições dos moradores. Falta um estudo de como foi realizada a produção do espaço da cidade pelos indivíduos, sobretudo àqueles ligados à pobreza, para que se possa recuperar um pouco do perfil não apenas de uma história distante, mas também recente e cotidiana, bem como trazer à luz as perspectivas geográfica, sociológica e política do ontem e da atualidade. Do contrário, termina-se por realçar o valor histórico ou imobiliário dos casarões, produzindo-se um discurso ideológico em que o espaço aparece sem cidadãos, e os cidadãos continuam a permanecer no silêncio dos sem- espaço, e sem serem tratados como os reais atores da caracterização das moradias coletivas.
4. Conhecendo os Moradores de uma Casa de Cômodo Encortiçada num Velho Sobrado do Recife.
A partir do desenvolvimento de pesquisa sociológica sobre cortiços ou as habitações coletivas do centro do Recife, que tem por objetivo identificar as condições da qualidade de vida de seus moradores, observamos, professora e alunos, que o desafio da cidadania se faz presente para cada um dos que moram num velho sobrado sem reparos e vive numa capital utilizando seus parcos recursos com aluguel. O que se passa é que bens e serviços de moradia não se encontram homogeneamente distribuídos no Recife, onde também o espaço vivido foi deixado à mercê do mercado. O lugar interfere diretamente no valor de cada indivíduo, pois cada homem vai valer pelo lugar onde se encontra, já que esse lugar é uma mercadoria. Seu valor como produtor, consumidor , cidadão, depende de sua localização. Isso, independentemente da personalidade, da maior ou menor soma de virtudes que o indivíduo possa ter, ou de qualquer outro tipo de diferença individual. O fato é que as oportunidades não são as mesmas.
Na Rua Velha, localizada no bairro da Boa Vista, pudemos participar do cotidiano de alguns de moradores que vivem numa "casa de cômodo" encortiçada, e que na verdade é um velho sobrado. Além disso, estabelecemos vários contatos com a locatária desse sobrado construído no final do século XIX, tendo ela fornecido informações preciosas sobre as condições legais do imóvel, entre as quais o fato de que há muito tempo o proprietário não paga Imposto Predial nem faz reparos no bem. Este é um prédio de dois andares, com duas varandas laterais. Nele são alugados quartos para pessoas que buscam por ali residir. O aluguel gira em torno de R$ 70,00.
Diferente do século XIX, a densidade demográfica de cada quarto não apresenta uma aglomeração de indivíduos ocupando o mesmo espaço. A média é de três pessoas em cada cômodo que chega a medir aproximadamente 8,0 m2.
Os moradores fazem parte de um ambiente segregado no centro da cidade, ao mesmo tempo que excluído socialmente, porque as políticas públicas do urbano não se pronunciam a respeito da melhoria da qualidade de vida desses moradores. Alguns dos habitantes são prostitutas, vendedores ambulantes, às vezes indivíduos que cometeram delitos e hoje trabalham no setor informal, desocupados cujos parentes arcam com suas despesas de moradia, cartomantes, homens sem proteção de aposentadoria, doentes pelo vício do álcool, empregadas domésticas, aposentados com renda mínima, marceneiros, etc. Pessoas que possuem ocupações que ficam próximas àquela moradia. A rotatividade de moradores é alta, apesar de residirem alguns mais antigos que ajudam a locadora do sobrado a "tomar conta dos outros" e do local. Isso significa receber novos inquilinos, telefonar para ela e lhe deixar a par dos últimos acontecimentos, inclusive quando há doentes que não podem se locomover ou problemas com a polícia envolvendo um de seus moradores, durante sua ausência. No sobrado vive-se em alerta, apesar da tranqüilidade, por vezes, estar estampada na aparência.
As pessoas que moram nesse sobrado são aquelas que possuem parentes na cidade mas não se sentem à vontade dormindo de qualquer modo na casa de outros. Preferem a sua individualidade no sobrado. Morando com a família sentiam-se explorados no dinheiro e pouco recompensados na hora de dormir, de comer, ou pela simples ausência de privacidade . O Sr. Levy de 34 anos, segundo grau completo, por exemplo, é um indivíduo bastante politizado que ali reside e, encontra-se com problemas de saúde por causa do alcoolismo. Trabalha vendendo bombons em shows de artistas no Recife. Indagado sobre os motivos que o levaram a ir residir ali ele afirmou sobre a importância de possuir um lugar seu, onde pudesse dormir sossegado. Eis um pouco de seu discurso:
"Antes de vir morar aqui vivia na casa da minha tia em Águas Compridas. Trabalhava mas dormia pior do que um cachorro: no terraço. Os vizinhos davam conselhos dizendo que o dinheiro que eu ganhava dava muito bem pra morar só. Aí eu tive um destino. Ela só vivia me xingando, queria me botar para fora. Tinha um primo que tomava cachaça e não trabalhava. Era eu somente para trabalhar, para manter oito bocas. Ainda chegava à noite para jantar não tinha jantar para mim . Aí eu passava a noite trabalhando porque o show terminava às 4 da manhã. eu chegava em casa às 5 horas. Aí já não dormia mais. Depois, enchia um tonel de 140 latas, subindo escadaria, passando a noite todinha cansado. (...) Eu gosto daqui né? Oxente, é melhor mil vezes. pelo menos aqui eu chego a hora que quero, vou trabalhar o dia que eu quero. ë meu canto, né?"
As razões apresentadas por outro locatário o Sr. José, 66 anos, doméstico aposentado e atualmente exercendo o ofício de cartomante, para ter ido morar num sobrado tipo casa de cômodo, também não são diferentes. Sem moradia, narrando que nunca teve uma casa apenas sua e, que vivia "na casa dos outros", explica que preferiu alugar um quarto no velho sobrado a morar acompanhado com outras pessoas num lugar violento. A convivência das classes populares com a violência é algo sentido, como ausência de tranqüilidade e de qualidade de vida. Morar num sobrado parece também imprimir mais status, ainda que não possua uma companhia no mesmo cômodo.
" Quando fiz minha aposentadoria eu vivia pela casa dos outros, nunca tive minha casa, vivia pela casa dos outros até conseguir minha aposentadoria. Agora, arranjei quartos em vários bairros mas não quis não, por causa da violência que está muito grande. A gente sozinho não pode morar. Aí eu arranjei este quarto e ainda estou aqui."
Também, a clássica motivação de morar próximo ao trabalho aqui surge no discurso do Sr. Paulo Sérgio, 28 anos, serralheiro que cursou até a sexta série do Ensino Fundamental. A dificuldade em morar longe e ter de gastar dinheiro com passagens é sua razão principal.
"Eu morava na Mustardinha ( bairro popular do Recife). Mas preferi morar aqui porque é perto do trabalho. Eu pegava ônibus e lá ficava ruim. "
Importante aspecto a ser considerado é o que cada morador consegue comprar com o dinheiro que lhe sobra após pagamento do aluguel do quarto. O Sr. Levy, por exemplo, tem uma despesa com alimentação que custa mais que o aluguel.
" Eu tenho despesa aí embaixo no barzinho que eu almoço e à noite janto. A pensão é 20,00 por semana com mais r$ 15, 35 que eu gasto durante a semana, sai por mês uns R$ 140,00, né? Tá bom, né? Eu gasto mais é com alimentação porque tem almoço e jantar" .
Outros aspectos são incluídos na despesa tais como compra de remédio, alimentação, mas tudo muito comedido, como esclarece Sr. Israel de Souza Silva, 33 anos, pedreiro e eletricista autônomo que cursou até a quarta série do Ensino Fundamental. Afirma que consegue comprar:
" Remédio e alimentação. Daqui a um pouquinho a gente vai no Bompreço (rede de Supermercado local) fazer as compras de passar um mês, não. A gente só faz uma compra porque aqui a gente não pode, aqui tem esse problema de Ter rato. Se tem roedor, a gente não pode estocar alimentação."
De maneira geral, a vida nos sobrados encortiçados tem as suas variantes em relação ao século XIX, sobretudo no que se refere à preferência por morar sozinho. A questão da autonomia sobre a própria vida, o medo de ir morar numa favela pelos níveis de violência ali presente são colocados como justificativas para a preferência da habitação nos velhos casarões, sem cuidados de manutenção. A pesquisa empírica com dados primários é a melhor forma de especificar quais são de fato hoje as condições de vida da população aí residente. Não se pode afirmar que o sobrado seja uma habitação coletiva sem risco de violência. Se julgamos apenas pelos depoimentos de alguns moradores, assim parece ser. Os moradores relativizam a compreensão da violência presente no sobrado como ameaça constante, pois esta é considerada em menor grau que a existente em bairros periféricos. Não raro, a polícia "inspeciona" os aposentos do casarão e, se não for impedida pela locadora de entrar, ocorre de invadir a propriedade em busca de algum achado de seu interesse. Mesmo assim, os moradores julgam que essa violência esporádica, pode ser evitada se se vive sem desagradar " as autoridades", constituindo assim algo menor .
Existe a valoração de considerar esse espaço coletivo como uma moradia unicamente sua e, conseqüentemente como propriedade privada. Essa é uma face da vida dos velhos sobrados encortiçados no Recife: individualizar o que em essência é coletivo e suscetível às vicissitudes do exterior pela precariedade da habitação, bem como pelo desrespeito à cidadania dos indivíduos que ali estão rotulados, estigmatizados e segregados socialmente. É um aspecto já observado por Michelel Perrot ao descrever as formas de moradia das classes populares urbanas na França do século XIX. A esse respeito ela afirma que o sentido de liberdade é começar a poder escolher o que é seu, mas, a originalidade desses moradores está em que a sua rede familiar não se circunscreve num espaço fechado. Eis o texto:
"A originalidade das classes populares urbanas está em sua rede familiar não se inscrever nem na imobilidade da terra nem no fechamento de um interior. Entretanto o duplo desejo de um lugar e um espaço para si se afirma com força crescente na segunda metade do século XIX. Ser livre é, para começar, poder escolher seu domicílio."
As redes de solidariedade possivelmente mostram como os moradores das habitações coletivas passam a considerar seus vizinhos de cômodo como espécies de parentes de sua família, com os quais podem contar nas horas de dificuldade em que cada um passa individualmente. O conceito de família diferencia-se daquele de um ambiente burguês plenamente privado, o que merece cuidadosa e criativa investigação sociológica .
BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, Júlia. O espaço sem cidadão e um cidadão sem espaço. In: CARLOS, Ana Fani Alessandri (org.) . Ensaios de geografia contemporânea: Miltons Santos, obra revisitada. São Paulo: Hucitec, 1996. p.p. 141 - 145.
FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: a continuação de Casa Grande & Senzala. 9 ed.Rio de Janeiro: Record, 1996.
HAHNER, June E. Pobreza e política: os pobres urbanos no Brasil - 1870/ 1920.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia das Letras: 1995.
MELLO, José Antônio Gonsalves de. Tempo dos Flamnegos. 3 ed. Recife: Massangana, 1987.
PERROT, Michelle. Maneiras de morar. In: PERROT, Michelle (org). História da vida privada, 4: Da Revolução Francesa à Primeira Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p.p. 307-323.
REZENDE, Antônio Paulo. (Des) Encantos Modernos: histórias da cidade do Recife na Década de 20. Recife: FUNDARPE, 1997.
SETTE, Mário. Arruar: história pitoresca do Recife antigo. 2 ed. Rio de Janeiro: Livraria e Casa do Estudante, 1952.
TOLEDO JÚNIOR, Rubens de. O espaço como instância social: a base para uma geografia nova. In: CARLOS, Ana Fani Alessandri. (org.). Ensaios de geografia contemporânea: Milton Santos, obra revisitada. São Paulo: Hucitec, 1996. p.p 149-159.
WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Da escravidão à liberdade: dimensões de uma privacidade possível. In: SEVCENKO, Nicolau ( org.). História da Vida Privada, 3: República :da Belle Époque à Era do Rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

Nenhum comentário:

Postar um comentário