segunda-feira, 27 de setembro de 2010

O sítio (Formação geológica)

Marcelo Mesel

Rios escorrendo para uma baía calma numa região de clima tropical úmido, cercada de morros, protegida dos humores das ondas oceânicas por longas paredes erigidas calmamente pelo tempo a partir de grãos de areia e carcaças de moluscos, os arrecifes.
Os grãos de terra, barro e húmus, arrastados permanentemente por suas águas enfeitiçadas a procura do mar, terminavam sua longa viagem ao Oeste desta baía, aos pés dos morros, dando origem a um solo de aluvião, argiloso, o massapê; já na sua posição mais oriental, mais perto dos arrecifes, depositavam-se sedimentos de origem marinha, formando uma extensa, estreita e contínua língua de terra. Ligada ao continente ao Norte, avançando em direção ao Sul, paralela aos arrecifes.
De grão em grão a baía se encheu de croas. As croas se tornaram ilhas, enquanto outras croas afloravam. As ilhas, nutridas pelos grãos, que não paravam de chegar à baía, trazidos pela compulsão dos rios e das marés, cresciam e se uniam a outras. As sementes, trazidas do interior pelos rios, ou de outras praias pelo mar, que ora encontrava passagens pelas paredes calcáreas, ora as transpunham com ajuda da força da lua, buscavam cegamente se fixar nas ilhas, croas, ou no fundo da baía, para realizarem seu sonho genético.
Quase todas, por diversos motivos, tinham seus sonhos frustados. Mas algumas, sejam levadas pelas mãos do acaso ou do destino, encontraram condições propícias para desabrochar e foram povoando aquele deserto de água e terra.
As gramíneas e ciperáceas mais afeitas ao solo firme tomaram conta das terras afloradas, enquanto outras se enfiavam nos solos alagados, sedentas de água salobra, dando origem a uma vegetação peculiar, denominada mangue. A fartura de alimentos produzidos alí pela decomposição das suas folhas nas águas, suas águas rasas e quentes, e áreas protegidas das correntes que impedem que animais predadores se aproximem, fazem do mangue um lugar propício para a reprodução de peixes, crustáceos e moluscos, que, misturados à sua fauna própria, tornam os mangues um dos ecossistemas de maior produtividade do planeta.
São caranguejos, siris, chiés, aratus, unhas de velho, ostras, camarões, pitus, agulhas, camurins, tainhas, carapebas, bagres, moréias e outros.
Enquanto isto, o processo evolutivo produzia o Homosapiens, que, encontrando condições favoráveis, dispersava-se por todos continentes, tendo os rios como ponto de apoio, com suas águas doces cheias de peixes, moluscos e crutáceos, tão necessários para matar a sede e a fome.
Os que aí chegaram e habitaram por muitos séculos, viviam da caça, pesca e coleta de frutos, utilizando arcos, flechas, lanças, redes e puçás, e encontravam-se ainda na Idade da Pedra Polida por volta de 1500.
Autodenominavam-se de Caétes, chamavam estes rios de "Rios das Capivaras" (Capibaribe) e "Rios das Arraias" (Beberibe), que eram tão limpos que as índias pariam nas suas águas, protegidas pelas bençãos de Iara, sua divindade protetora. Foi neste cenário que se construiu uma cidade, metade roubada ao mar, metade à imaginação, no dizer do poeta Carlos Pena Filho.
Recife dos Navios,onde tudo começou
O primeiro registro histórico do Bairro do Recife data de 12 de março de 1537, quando o então donatário da capitania de Pernambuco, Duarte Coelho, recebeu a carta de doação da Coroa Portuguesa: o chamado Foral de Olinda. Na carta, o lugar era citado como um ancoradouro de navios, onde mais tarde um lugarejo daria origem à futura capital de Pernambuco. O nome do bairro e da cidade se referia aos recifes de arenito, formação rochosa marinha presente em toda costa pernambucana . Na frente do bairro, os recifes chegam a formar um porto natural.
O Foral de Olinda serve para dar uma idéia de como era a paisagem da época. Na escritura, lavrada em 24 de abril 1593, Duarte Coelho faz boas referências geográficas. "...todos os mangues em redor desta vila, que estão ao longo do rio Beberibe para baixo, e para cima até onde tiver terra de arvoredo, e os do rio dos Cedros e Ilha do Porto dos Navios. Os varadouros que estão dentro do Recife dos Navios e os que estiverem pelo rio arriba dos Cedros e do Beberibe, e todos outros varadouros que se achar ao redor da vila e terreno dela, será para serviço seu e do seu povo".
No documento, o lugarejo é chamado de Recife dos Navios, nome que comprova a escolha do porto natural. Até esta denominação se firmar, a região também foi conhecida como Porto de Santelmo, Arrecife de São Miguel e povoado do Corpo Santo.
A cidade ganha impulso quando, em 1630, os holandeses, pela Companhia das Índias Ocidentais, resolvem ocupar a região Nordeste do Brasil. Incendeiam a então capital da província, Olinda, e tornam o Recife ponto de escoamento das novas matérias-primas da colônia portuguesa. O conde Maurício de Nassau chega à cidade para comandar a Companhia da Índias e utiliza o conhecimento dos flamengos em pontes e aterramentos para dar nova paisagem ao Recife dos Navios, um istmo. Foi ele que realizou o primeiro plano urbanístico do Brasil.
O transporte entre o Recife com as ilhas de Santo Antônio e o continente era cobrado e feito por balsa. O custo do uso da balsa chega a triplicar em três anos. Nassau programa a construção de uma ponte e inaugura com uma grande festa, em 28 de fevereiro de 1644, a primeira ponte do Brasil.
Em 1654, os holandeses são expulsos do Brasil e no Bairro do Recife se contabilizam 300 prédios. São casas térreas, sobrados com um ou dois andares, mirantes, a Igreja do Corpo Santo, o Palácio do Governo, a Alfândega, cadeia, provedoria, Casa da Câmara, a Sinagoga dos Judeus e armazéns.
Na rua, que viria se chamar de Rua do Bom Jesus, foi construída a primeira sinagoga das Américas. A rua sempre foi importante para o lugarejo, pois era passagem para Olinda. Por causa do templo, foi conhecida como Rua dos Judeus. Por causa da Inquisição, Rua da Cruz, e depois Rua dos Mercadores.
O Bairro do Recife impressionou, anos depois, em agosto de 1836, o cientista Charles Darwin: "A cidade foi construída sobre bancos de areia estreitos e baixos, separados uns dos outros por canais rasos de água salgada". Novamente é o porto natural e sua formação rochosa o que desperta grande interesse. "Duvido de que em todo o mundo haja outra estrutura natural que apresente aspecto tão artificial (...) vários quilômetros em absoluta linha reta paralela à costa e pouco distante desta (...) como um quebra-mar construído pela mão dos cíclopes".
"Era o Recife do Arsenal, da Alfândega, dos guindastes, das senzalas, da Rua do Bom Jesus, da Cruz do Patrão, dos sobrados de azulejos, de três, quatro e até mais andares" (Pinto, E. - 1940- pp10-11)
A primeira reforma do Porto faz ferver o Bairro
Bairro do Recife sempre teve o seu destino estreitamente ligado ao porto. Quando havia queda no escoamento de mercadorias, chegavam a reboque o desemprego e a decadência. Somente no início do século 19 que o porto e, consequentemente, o Bairro do Recife receberam a atenção merecida. A vinda da família real para o país e a abertura dos portos brasileiros ao comércio estrangeiro repercutiram profundamente na cidade. A entrada de capital britânico revigorou a economia local, forçando a modernização do porto do Recife, por onde escoava grande parte da cana-de-açúcar e do algodão.
A Revolução Industrial trouxe o emprego do ferro nos navios, o que aumentou o comprimento e a sua capacidade de carga, exigindo mais dos serviços portuários e dos ancoradouros. Os primeiros projetos para reforma do porto do Recife começaram a ser elaborados em 1815. Mas os trabalhos só iniciaram no ano de 1909. Nesta época, o bairro estava em plena efervescência econômica. Ele concentrava o comércio exportador e importador, as finanças nacionais e estrangeiras, os serviços públicos básicos (como transportes ferroviário e marítimo), além das comunicações. O bairro começou a inchar, abrigando cerca de 13 mil pessoas distribuídas em 1.180 casas e sobrados.
A conexão imediata entre o Bairro do Recife e o restante da cidade era feita pelo bairro de Santo Antônio, que abrigava o Palácio do Governo, o Tesouro do Estado, o Quartel da Cavalaria, o Fórum, o Teatro Santa Isabel, a Biblioteca Estadual, o Gabinete Português de Leitura e as redações dos jornais da época. Durante o século 19, o bairro reunia a parte mais pobre da cidade (pescadores, artesãos, caixeiros, trabalhadores portuários), enquanto a elite se concentrava em áreas como Boa Vista e Benfica. Com a reforma, que teve início nas primeiras décadas deste século, a situação mudou.
O Recife sofreu a sua primeira reforma urbana. Todo núcleo original foi demolido para dar lugar a um traçado influenciado pelo urbanismo francês do século 19. Foram alargadas ruas, como a Marquês de Olinda, e criadas outras, a exemplo da Avenida Rio Branco. Nesta época também foram elaborados planos de saneamento para o bairro e iniciadas algumas obras. A reforma, no entanto, não levou em consideração a conservação do patrimônio histórico. Prédios foram destruídos, como a capela do Corpo Santo (construída pelos portugueses no século 16) e os arcos da Conceição e Santo Antônio, que davam passagem para a Ponte Maurício de Nassau, a primeira do país. Dos 1.180 prédios do bairro, 205 foram demolidos. Houve desapropriações e os antigos moradores formaram uma população marginalizada, ocupando os prédios em ruínas ou erguendo barracos.
"A Praça Rio Branco faz lembrar Hamburgo. Quem diria que deste lado do Atlântico, o viajante pudesse topar com um espetáculo como este, típico de uma grande cidade européia" (Castro, 1937 - pp.11-16).

A cidade ganha ares europeus

Embora tenha ignorado as conseqüências sociais e históricas, a reforma concedeu ao bairro um aspecto urbanístico e estético que o igualou a cidades da Europa. A área ficou valorizada por alguns anos, atraindo uma boa parte da elite, grandes negociantes de companhias financeiras e seguradoras que pretendiam transformar os sobrados em prédios residenciais e comerciais, como era de hábito nas cidades européias na época.
Antes da reforma, cada prédio possuía um comércio no térreo e os outros andares eram habitados pela família do comerciante. Com a modernização, os prédios se inspiraram no sistema habitacional parisiense, com várias famílias habitando os andares e o comércio funcionando no térreo. Na época, não era hábito local viver em apartamentos, o que acabou contribuindo para o desinteresse das famílias em residir no Bairro do Recife. Não foi só isso.
A chegada de um maior número de embarcações aumentou o número de marinheiros e prostitutas circulando pelo bairro. A sujeira causada pela movimentação de cargas também afetou o interesse das famílias de boa renda.
Depois da Segunda Grande Guerra, os prédios que tinham sido reformados e não foram vendidos, começaram a ser alugados para comerciantes, caixeiros viajantes e prostitutas. Todos usufruíam das habitações sem levar em conta a conservação do prédio. Contraditoriamente, a ocupação dos imóveis por essas atividades manteve a integridade da arquitetura do bairro. Somente em 1987 foi traçado um novo plano para revitalizado do lugar.

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