(Relatório da Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento)
(Javier Pérez de Cuéllar, Papirus,1997)
Cultura e Desenvolvimento
Duas visões do Desenvolvimento
Com a intenção de limitar a desconcertante gama de significações acerca dos conceitos de Cultura e Desenvolvimento, duas foram as perspectivas utilizadas na visão de desenvolvimento. A primeira, o desenvolvimento é um processo de crescimento econômico, uma expansão rápida e duradoura da produção, da produtividade e da renda per capta, às vezes matizada pela repartição eqüitativa dos benefícios do crescimento. A segunda, o desenvolvimento humano como um processo que fortalece e amplia a liberdade efetiva de um povo em busca da realização dos objetivos por ele valorizados, enfatizando a ampliação das capacidades e das possibilidades dos povos e o alargamento das opções de indivíduos, de grupos e de culturas distintas. Vale ressaltar que essa acepção não denotam o simples incremento da produção material.
A cultura pode ser vista, então, como um instrumento ou como um fim desejável em si mesmo. Para o que trata da acepção de desenvolvimento apenas como crescimento econômico o papel da cultura é puramente instrumental na promoção do crescimento acelerado ou como um obstáculo a ele. Neste caso o crescimento econômico é considerado como algo que tem valor próprio e seus instrumentos são tidos como meios para alcança-lo. Por outro lado, questiona-se se o crescimento econômico é um mero instrumento sem condições de disputar com os aspectos culturais uma posição fundamental para a existência humana. É importante considerar que, no geral, as pessoas apreciam os bens e serviços econômicos, o que as permite viver livremente e segundo seus valores de desejos, mas por outro lodo a própria apreciação desses bens e serviços ou do reconhecimento desses valores e desejos é, em última instância um dado cultural. Eis que surge importantes questões: É a cultura um aspecto ou um instrumento do desenvolvimento entendido como crescimento econômico? Ou, é a cultura a finalidade do desenvolvimento, compreendido na acepção de florescimento da existência humana em todas as suas formas, já que a economia faz parte da própria cultura de um povo.
Para compreender este duplo papel da cultura e sua aplicação, não somente no contexto de crescimento econômico, mas também na conservação do meio ambiente, natural ou construído, bem como na preservação dos valores da família, na proteção das instituições civis da sociedade, etc a cultura deve ser apreendida de maneira mais fundamental: não como instrumental de outros fins, mas como a base social desses próprios fins. Em outras palavras, para compreender a "dimensão cultural do desenvolvimento" é necessário apreender os dois papeis da cultura.
Cultura e Desenvolvimento
O objetivo último do desenvolvimento humano e um dos seus mais importantes instrumentos e meios é, então, o indivíduo. Porém esse não é uma ilha ou átomo isolado, as pessoas trabalham juntas, cooperam, competem, interagindo de diversas formas. A cultura é justamente o que as conecta e define como elas se relacionam com os meios natural e construído, e como expressam suas atitudes e suas opiniões, tornando possível o desenvolvimento de cada indivíduo. Pode-se, assim, entender desenvolvimento humano e crescimento econômico como partes ou aspectos da própria cultura de um povo. Não há sentido, assim, relacionar cultura e desenvolvimento como conceitos separados e estanques. A Cultura deve ser entendida então como o a finalidade última do desenvolvimento, definido como "florescimento da existência humana em seu conjunto e em todas as suas formas".
Entretanto, essa definição de Cultura é rejeitada e seu significado reduzido ao de "estilo de coexistência" e de desenvolvimento como sendo "a ampliação das possibilidades, oportunidade e opções" e a ligação entre Cultura e Desenvolvimento passa a referir-se ao estudo das várias formas de coexistência que interferem na ampliação das opções abertas ao homem. A Cultura de não é estática ou imutável, ao contrário, é um fluxo constante que influencia e é influenciada por outras, refletindo sua história, seus costumes suas instituições e atitudes, conflitos, etc.
Assim, a noção de "Desenvolvimento Culturalmente sustentável", deve ser empreendido com grande preocupação, visto que a Cultura não pode restringir-se a um papel de instrumento que "sustenta" outro objetivo ou excluir a possibilidade de seu crescimento ou evolução. Pois a Cultura é uma fonte permanente de progresso e de criatividade. Superar o papel instrumental da cultura e reconhecer ser papel construtivo, constitutivo e criativo é pensar o desenvolvimento em termos que englobe o crescimento Cultural.
A maioria dos países são constituídos pela multiplicidade Cultural, gerando benefícios ou conflitos. Os governos não podem determinar a cultura de um povo, são na verdade determinados, pelo menos em parte, pela Cultura desse povo, mas podem influenciá-la positiva ou negativamente e, por conseqüência, modificar as vias do desenvolvimento. O princípio é o respeito, que vai além da tolerância, significa uma atitude positiva diante a diversidade cultural. O jogo nesse caso é de poder, pois a hegemonia Cultural baseia-se na exclusão de grupos subordinados e em argumentos pseudocientíficos invocados para justificar o domínio sobre os outros. "Uma política baseada no respeito mútuo apoia-se largamente na racionalidade científica.
Como, então, substituir o ódio pelo respeito em um mundo familiarizado com a "purificação étnica", o fanatismo religioso e o preconceito racial e social? A resposta pode residir na liberdade cultural, se esta for um dos pilares sobre os quais se assenta o Estado. Esta liberdade é diferente das outras formas de liberdade, não podendo ser comparadas. Primeiro, enquanto grande parte das liberdades são individuais a liberdade Cultural é coletiva. O que não implica a conivência com a corrupção de direitos coletivos, a exemplo das sociedades de castas ou dos grupos de pressão que neguem qualquer tipo de liberdade individual.
Segundo a correta interpretação da liberdade cultural garante a liberdade a liberdade um seu conjunto, não apenas a coletividade, mas também o indivíduo. A liberdade cultural, nesse caso, constitui uma proteção adicional para a liberdade individual.
Terceiro ao proteger modos alternativos de vida, de que trata os fundamentos do Desenvolvimento Humano, a liberdade individual incentiva a criatividade, a experiência e a diversidade, ao mesmo tempo que torna as sociedades inovadoras dinâmicas e duradouras. Por fim, a liberdade é a espinha dorsal da cultura, em particular a liberdade de decidir ao que dar valor e que modos de vida buscar, de definir nossas próprias necessidades fundamentais, o que tem sido ameaçado por pressões globais e pela negligência mundial.
Cultura Global fragmentada.
Não menos importante que a expansão dos processos econômicos e sua interdependência internacional aplicada ao comércio, ao investimento externo, ao fluxo monetário e às migrações populacionais, a de expansão internacional os processos de natureza cultural estão se tornando globais. As atitudes dos jovens de Ladakh a Lisboa, da China ao Peru, enfim nos quatro cantos do mundo estão semelhantes, seja no uso do jeans, no penteado, nos mesmos gostos para música, nos hábitos alimentares ou em relação à sexualidade, ao divórcio e ao aborto. Também romperam as fronteiras e tornaram-se crimes globais o trafico de drogas, o abuso e a violência sexuais, a fraude e a corrupção.
Contribuições culturais nesse processo de mundialização cultural não são prerrogativa de um só país, elas vêem dos quatro cantos do mundo e exercem grande pressão para penetrar outras culturas, à exemplo da cultura popular mundial na música, no cinema, na televisão, na moda. O perigo, entretanto, reside dessa expansão da cultura de massa popular, onde o tamanho e a escala dos meios de comunicação ditam o conteúdo a ser divulgado, muitas vezes em detrimento dos desejos e dos interesses das minorias, afetando assim não só o interesse das elites, mas dos homens e mulheres comuns. A diferença deve residir na diversidade e a oportunidade para que uma ampla gama de vozes possa ser ouvida no público mundial.
Porém, "a impressão de uniformidade global é ilusória". A mundialização é, em si, uma processo desigual e assimétrico: não reduz as incertezas, as inseguranças e a entropia do sistema mundial. No mundo pós-guerra-fria, a consciência dessa realidade tem gerado algumas reações contra os padrões uniformizados de informação e de consumo que são muitas vezes mal aceitos, principalmente na Europa Central e Oriental. Os povos voltam-se para a cultura como um meio de autodeterminação e de mobilização, e reafirmam seus valores culturais locais. Assim como os mais pobres, onde seus valores culturais são muitas vezes o único bem que eles possuem, sua identidade, continuidade e sentido de vida.
É, uma reação contra os efeitos alienantes da moderna tecnologia de larga escala e da distribuição desigual dos benefícios da industrialização, e, uma preocupação como a perda de identidade, do sentido de comunidade e dos valores pessoais advindos do desenvolvimento.
É, uma reação contra os efeitos alienantes da moderna tecnologia de larga escala e da distribuição desigual dos benefícios da industrialização, e, uma preocupação como a perda de identidade, do sentido de comunidade e dos valores pessoais advindos do desenvolvimento.
O caráter dinâmico e evolutivo da Cultura e seu papel de indenidade provocam conflitos, pois muitos grupos desejam retornar as suas tradições antigas ou mesmo mantê-las na forma de um retorno ao tribalismo, ao passo que muitas pessoas desejam participar da "modernidade" dentro de suas próprias tradições. Assim, alguns aspectos tradicionais merecem ser preservados integralmente, na medido em que podem, como outros, ter um papel instrumental no processo de desenvolvimento econômico. Outros aspectos evoluirão para adaptar-se ao mundo em evolução e outros serão implantados de fora. Tradição pode significar às vezes estagnação, opressão, inércia, privilégios e práticas cruéis; modernização, por seu turno, pode significar alienação, anomia, exclusão e perda de identidade e do sentido de comunidade.
Quando falamos em civilização mundial, o que temos em mente não é um único período histórico nem um único grupo de homens: empregamos o conceito abstrato, ao qual atribuímos um significado moral ou lógico. Moral, se pensarmos em objetivos perseguidos pelas sociedades existentes; lógico, se usarmos a noção para designar os traços comuns encontrados na análise de diferentes culturas. Tanto em um caso como em outro, não podemos fechar os olhos para o fato de que o conceito de civilização mundial é muito esquemático e imperfeito, e que se conteúdo intelectual e emocional é fraco. Tentar avaliar todas as contribuições culturais acumuladas durante vários séculos tão ricos em pensamentos, sofrimentos, esperanças e no trabalho criador de homens e mulheres, tendo como única referência a noção ainda vaga de civilização mundial, seria empobrecê-la sobremaneira, esvaziando-as de seu sangue e nada deixando senão ossos. A verdadeira contribuição de uma cultura consiste não na lista de invenções produzidas por indivíduos, mas na sua originalidade em relação às outras. O sentido de gratidão e de respeito que todo membro de uma determinada cultura ode e deve sentir em relação às outras deve estar baseado na convicção de que as outras culturas de distinguem de sua própria de várias maneiras, mesmo se a verdadeira essência das diferenças lhe escapa, ou a despeito de seus melhores esforços, ele só pode compreendê-las de forma apenas imperfeita. Portanto, a noção de civilização mundial só pode ser aceita como um tipo de conceito-limite, ou como uma forma esquemática de designar um processo altamente complexo. Não há, nem haverá, uma civilização mundial no sentido absoluto em que esse termo é usado, pois a civilização implica a coexistência de culturas dotadas de um vasto espectro de diversidade; na verdade, a civilização consiste nessa coexistência. Uma civilização mundial poderia, de fato, representar simplesmente uma coalizão de culturas em escala mundial, cada uma das quais preservaria sua própria originalidade. Claude Lévi-Strauss |
O PATRIMÔNIO CULTURAL A SERVIÇO DO DESENVOLVIMENTO
O patrimônio tangível e o patrimônio intangível.
As riquezas herdadas por nossa geração, e, de nossa responsabilidade na transmissão para as futuras gerações, constituem-se de recursos culturais tangíveis e intangíveis e são essencialmente não renováveis. Trata-se da memória coletiva e de identidade de comunidades de todo o mundo. A proteção desse patrimônio cristalizou-se primeiro nos bens tangíveis (monumentos e sítios históricos), sendo estes os principais beneficiários da noção de preservação do patrimônio. Entretanto o patrimônio intangível não teve a mesma sorte. A idéia de patrimônio em toda parte conforma-se a um único modelo dominado por critérios estéticos e históricos, privilegiam a elite e o masculino; merecem atenção e respeito o monumental em detrimento do simples, o literário em detrimento do oral, o cerimonial em detrimento do cotidiano, o sagrado em vez do profano. Somente por meio da preservação dos elementos intangíveis é possível considerar as culturas autóctones de uma perspectiva histórica.
Há um sentimento dos que consideram o patrimônio cultural e natural, em todos os seus aspectos, não tem sido utilizado e valorizado de forma ampla e efetiva como poderia, nem tem sido gerido com a devida sensibilidade. Embora pareça haver um investimento cada vez maior no "futuro do passado", existe um diferença entre a retórica e a prática, principalmente quando se trata de avaliar o que tem sido efetivamente preservado, e em que estado. Na medida que o conceito de patrimônio amplia-se com novas categorias, numa espécie de inflação, há mais o que preservar a também há mais problemas a serem geridos. A questão que se apresenta tem haver com as possibilidades finitas e trata especificamente de como proceder escolhas e quem decide? Sabendo que o dinheiro e a energia poderiam ser empregados para satisfazer as necessidades básicas das pessoas levanta outras questões: O que deve ser preservado e a quem cabe decidir? Quais serão os critérios? Estarão sendo observados e reconhecidos as necessidades específicas do diversificado patrimônio cultural e natural?
Patrimônio cultural e economia: Vantagens e armadilhas
A preservação histórica, já nos anos 70, foi uma das primeiras áreas culturais a receber recursos financeiros por ser um setor que se justificava economicamente. A reutilização dos centros históricos, após readaptados, freqüentemente como museus, foi considerada eficiente em termos de custo-benefícios. A idéia de "conservação com desenvolvimento", encontrou adesão em todo o mundo e ganhava legitimidade teórica e prática. Porém essa união entre oportunidades econômicas desvinculadas dos sistemas de valores representados pela conservação, não foram muito felizes. A conservação não poderia ser bem-sucedida se as relações entre espaço construído e fatores como a qualidade da infra-estrutura urbana, a propriedade do solo urbano, o crescimento e a densidade demográfica, a disponibilidade de habitações, a saúde e a pobreza urbana não forem levados em consideração.
Uma abordagem de "cima para baixo", um planejamento urbano imposto por estruturas burocráticas, criadas ainda no período colonial, onde a ênfase dessa instituições era sepultar o passado. Em conseqüência, o distanciamento dessas instituições com o povo gerou um hiato até hoje observado. O patrimônio assim, é considerado propriedade do Estado e não do povo. Os recursos escassos do estado relegam, então, esses patrimônios ao quase esquecimento, apresentado diversos estados de conservação, quando não são invadidos por populações "sem-teto" ou comerciantes irregulares. Já os patrimônios não tombados freqüentemente vão a ruína total.
O pós independência e o flagelo do paradigma modernista na arquitetura e no urbanismo conduziu a demolição de trechos inteiros das cidades pré-coloniais. O recife não foi exceção.
Nem o sentimento nacional, tampouco a iniciativa privada aproximaram-se da idéia de patrimônio histórico como fonte de identidade, em contrário, o hiato fora acentuado.
Abordagens populares sobre o assunto têm gerado experiências de desenvolvimento comunitário e melhoria da qualidade de vida em níveis economicamente realistas e tecnicamente apropriados. Novas instituições têm auxiliado as comunidades locais a gerir a conservação cultural. O retorno mais durável do investimento não tem sido financeiro e sim educacional e social. O custo preservação de patrimônio histórico em áreas de grande pobreza enfrenta dificuldades de justificação orçamentária. Nesse aspecto está sendo de grande importância o papel das organizações não governamentais, muitas vezes melhor sucedidas na captação de recursos externos.
O turismo, no seu turno, está se tornando rapidamente a maior industria mundial, e é no patrimônio cultural que ele encontra grande parte de sua força vital. A simbiose desses conceitos conduz ao surgimento da conhecida "industria do patrimônio, o que gera certa preocupação pela possibilidade do patrimônio cultural vir a se tornar um bem a serviço do turismo, degradando-o e dilapidando-o. Muitos já são os casos de efeitos catastróficos na conservação e ao tecido social e ambiental de vários sítios em função do número excessivo de turistas.
A identificação e a interpretação.
A reavaliação do que se define hoje como patrimônio em diferentes culturas, em termos de seu uso, de proteção e de manutenção, faz-se urgentemente necessário, visto que nenhum quadro conceitual pode ser aplicado a todas as diferentes condições locais, bem como, não existe nenhum método científico que se apoie na experiência existente e nos novos conhecimentos adquiridos para conservar e restaurar patrimônios geoculturais distintos. O simples fato, por exemplo, de definir uma construção dotada de patrimônio histórico ou cultural, implica coloca-la uma pouco à parte da vida cotidiana que se apresenta no palco do ambiente construído, porém muito distante da elite, cultural e topograficamente, contribuindo para a decadência do contexto físico e social onde se encontram esses elementos. Em outras palavras a definição de conservação de um patrimônio carece de uma identificação apropriada de suas arquitetura com base na família estilística a qual pertence, e do manuseio sensível dos elementos dentro de seu quadro.
A identificação e a interpretação do patrimônio passa, então por, por uma série de intermediários entre o Estado e o público e incluem universidades e institutos de pesquisa capazes de fornecer conhecimento científico e compreensão do significado do patrimônio. A igreja também é peça importante nessa identificação, pois é parte de um culto vivo, e a consciência da dimensão religiosa é necessária para que o apoio social seja adequadamente mobilizado. Esse conhecimento é necessário para que o objeto não seja desviado do seu contexto, o que levaria a uma compreensão incompleta do objeto. O tangível somente pode ser interpretado pelo intangível, entretanto a retórica e a prática internacionais tem limitado o patrimônio a dimensão tangível.
De fato, nos atos políticos de evocação aberta as complexidades das provas culturais tendem a concentrar-se exclusivamente em objetos altamente simbólicos em detrimento de formas populares de expressão cultural ou da verdade histórica, condensando e simplificando de forma radical a realidade.
Talvez esses símbolos só sejam importantes se as ideologias políticas forem utilizadas para causas justas como instrumento de libertação da opressão, em vez de serem, como são, freqüentemente utilizados para resgatar direitos legítimos para uns, e negá-los a outros.
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Olá
ResponderExcluirGostaria de saber se este é um fichamento do texto original ou um artigo seu. Grata.