sábado, 22 de maio de 2010

Cartas – 12 As incertezas do eu e a resistência à heteronormatividade

Caro Amigo,

O modo como são apresentados os eventos e os costumes da sociedade contemporânea permite a apreensão do lugar a partir de onde articulamos seus valores e crenças. Destarte, a diversidade de referencias culturais aqui elencadas cobre um amplo espectro que abrange, entre outros, Pedro Almodóvar, Manuel Puig e Nelson Rodrigues, chegando a Anne Rice e seus maravilhosos vampiros.
Ao construírmos o entrecruzamento de tantas formações discursivas distintas temos a possibilidade de olhar atentos à heterogeneidade da cultura nacional. As referências da cultura de massa, do cinema e dos antigos boleros estão a serviço da construção de uma feminilidade performativizada e se constituem em uma projeção identitária mais ou menos coesa. Já o repertório de citações da cultura midiática funciona em outro sentido: ao invés de colaborar para a instituição de uma identidade monolítica, dinamiza e pulveriza a identidade nacional una através do desvelamento das fronteiras de raça, gênero e sexualidade.
Assim, um cinquentão grande, forte, de ombros largos e cabelos ligeiramente grisalhos contrastando, ensaiados, com as sobrancelhas cerradas e face severa, usando terno cinza escuro ou camisa aberta exibindo os pêlos abundantes do tórax, descreve os estereótipos da masculinidade heterossexual como emblema estereotípico da masculinidade hegemônica em uma sociedade patriarcal e heteronormativa. Emerge daí o ícone heteroerótico – como metáfora emblemática das classes dominantes brasileiras – as quais aliadas ao poder vigente e aos interesses hegemônicos criam um sistema que reúne valores e crenças compartilhados por uma determinada cultura, que definem sistematicamente um modo de perceber o mundo social, cultural, físico e psicológico. Deste modo, nossa compreensão dos valores de uma cultura e nossa aceitação ou rejeição destes valores são freqüentemente baseados em nosso próprio sistema de crenças cultural.
Parece evidente, entretanto, que o rompimento com estes estereótipos desfralda cada vez mais o homoerotismo destes mesmos homens, outrora heteronormativos, coincidindo, obviamente, com os indícios do esfacelamento da união marital. O enredo pode descrever um homem comum (um anônimo), em um dia de confraternização. Outro homem pára para conversar, então o anônimo pede para ver sua mão. O homem oferece-lhe a mão, e o anônimo olha para a mão e para o homem com ternura. Um oportunista intensifica este momento e sugere que homem e o anônimo tinham um caso de longa data, e essa versão dos acontecimentos não se esvai. A partir daí, todos começam a acreditar que homem e anônimo eram realmente amantes, inclusive a esposa do homem, que até então acreditava conhecer o marido. Ao final ninguém acredita na versão de homem, que passa o tempo todo se afirmando no estereotipo heteronormativo, e que este fato isolado não o torna homoerótico. O enredo interpretativo desloca o gesto imaginário do receio em adotar uma identidade homoerótica o que perpetua o sistema de crenças e valores. A cena de amor entre o homem e o anônimo na verdade acontece apenas na mente erotizada do anônimo. Não é real, mas mítica. Como o fantasma que perseguirá eternamente os heterossexuais apavorados: a possibilidade de um amor entre iguais.
É compreensível, claro, o anseio de parte da sociedade por tentar definir de maneira estanque a identidade sexual desses homens através de categorias monolíticas como, por exemplo, a bissexualidade. Contudo, isso resulta em um niilismo do papel de contestação articulado pelas identidades heteroeróticas ao considerar que as crenças e os valores tradicionais são infundados e que não há qualquer sentido ou utilidade na existência. Será que somente depois de um casamento frustrado pode ser desfraldado o homoerotismo destes homens?
Nós próprios, apesar da resistirmos à identificação com uma identidade homossexual, manifestamos o desejo por homens sem, no entanto, subscrever uma suposta identidade homoerótica. Um destes momentos ocorre ainda durante a conversa entre o anônimo e o homem, em um encontro cotidiano, quando o anônimo afirma sem se controlar: você canta e encanta. Mas o anônimo é um sujeito sério e não quis se revelar. Você pode me perguntar se sou, ao que lhe respondo com um enfático não sei.
Mas, após um gozo comprado com Dora, acredito que você passou a rememorar suas lembranças de um antigo amigo. Nos encontros com ele, diferentemente do encontro com o prazer comprado com Dora, mais do que um possível desejo sexual, há uma espécie de afeto, algo mais profundo do que o desejo carnal. O que dá a essa relação com outro homem um caráter que extrapola o sexual ou a mera camaradagem entre homens, pois o toque na mão não era desses toques de mãos de bêbado, encharcado de álcool e cumplicidade masculina, carência etílica ou desejo cúmplice. Havia uma busca por uma relação mais verdadeira (erudita talvez), independente do fato de ser tal relação estabelecida com um homem, e não com uma mulher; não com Dora.
O toque em suas mãos era o toque de um homem sentindo desejo.
Esta frase é uma referência à canção. Dora, de Dorival Caymmi, letra de Vinicius de Moraes.
...
Sua Dora, agora vai passar.
Venham ver o que é bom
Ò Dora, rainha do frevo e do maracatu
Ninguém requebra, nem dança, melhor que tu!
Dora, rainha do frevo e do maracatu
Dora, rainha cafuza de um maracatu
Te conheci no Recife
Dos rios cortados de pontes
Dos bairros, das fontes coloniais
Dora, chamei
Ò Dora! . . .Ò Dora!
Eu vim à cidade
Pra ver você passar
Ò Dora ...
Agora no meu pensamento eu te vejo requebrando
Pra cá,ora prá lá
Meu bem! ....
Os clarins da banda militar, tocam para anunciar
Sua Dora, agora vai passar.
Venham ver o que é bom
Ò Dora, rainha do frevo e do maracatu
Ninguém requebra, nem dança, melhor que tu! POR OUTRO HOMEM
Ao estabelecer uma leitura comparativa entre o jogo do anônimo com Dora (joguei o jogo de jogar o jogo) e esse jogo que não era jogo que se dá entre nós, explicitando o fato de que o investimento afetivo mais forte e verdadeiro entre o homem e o anônimo, e não com Dora. De certo naquela noite, talvez estivéssemos bêbados demais, ou não bebido nada, talvez estivéssemos exaustos daquele jogo que não era jogo. - Ele me deu sua mão e, ao segura-la, ele puxou-a para o seu lado. Eu virei a palma da mão para cima, para o lado, para baixo - morto de riso. Em oposição ao jogar o jogo de jogar o jogo. (premissa que pauta a relação estabelecida com Dora), está a exaustão daquele jogo que não era jogo. Daí se pode subentender que o investimento na relação homoerótica é, aparentemente, apenas uma busca irrefreada pela satisfação dos instintos sexuais. Revela-se a posteriori como a tentativa de uma interação emocional legitima, por parte do anônimo, para com o homem.
Entre seus dedos frios, de unhas curtas, apanhou meus dedos e curvando mais a cabeça, levou-os até meu tórax, fazendo-me tocar no mesmo ponto onde tocara antes. Senti minhas mãos tremerem, mas não as retirei. A tensão gerada pelo momento abre espaço para a reflexão sobre a identidade sexual, práticas homoerótica e identidade homossexual. Subitamente abri os olhos para o imaginário, seus dedos colados nos meus, você perguntou. Você é ... ? Lembrei de Dora. Retirei os dedos.
Estas oscilações entre o sentir-se à vontade com outro homem, explorar seu corpo e a resistência à identificação com a homossexualidade apontam para uma maneira ambivalente de constituição da própria subjetividade de parte do anônimo. A orientação sexual não é vista como a base fundacional para uma identidade social, mas como uma constituição provisória e instável, da ordem do contingente. Mais do que investir na idéia de uma identidade sexual, a aposta volta-se para uma valorização das práticas sexuais, muito mais do que das identidades sexuais. A resistência em aceitar uma identidade sexual prêt-à-porter não se dá em função de uma postura homofóbica, nem mesmo em função de uma suposta complacência com as normas reguladoras heteronormativas, mas sim como um gesto a encarar a construção do eu como uma atividade processual.
A relação problemática vinculando identidades homoeróticas com o sistema de crenças e valores é de grande monta para a compreensão da resistência por parte das normas reguladoras heteronormativas. É sabido que a luta política pela desconstrução dessa relação problemática foi, em grande medida, responsável por uma guinada nos movimentos sociais homoeróticos que acabou abandonando ideais como a visibilidade de uma homossexualidade bem-comportada e passou a investir em posturas desestabilizadoras, questionando assim a própria validade de um par opositivo conceitual como heterossexualidade vs. homossexualidade, substituindo a categoria identidade sexual pela de práticas sexuais. O esforço para desvincular esse continuum é, ainda hoje, ponto de extrema relevância na agenda dos grupos homoeróticos.
Portanto, a resistência e o desconforto do anônimo em reconhecer-se em uma identidade homoerótica não deve ser associada com uma postura de manter-se no armário, pois, o desconforto com a identidade homossexual surge também pautado nas práticas heterossexuais. Isso implica simultaneamente, no breve não sei do anônimo:
·       um questionamento a respeito da validade da homossexualidade. (entendida como categoria identitária, estável, monolítica e auto-evidente);
·       um questionamento com relação à natureza de sua própria identidade sexual (a qual extrapola os domínios da homo e da heterossexualidade); e
·       uma recusa a esta suposta fixidez ou estabilidade das identidades sexuais pré-estabelecidas.
Tal postura ecoa também pelas palavras desconexas do anônimo ao explicitar suas dúvidas e ressalvas com a idéia de uma identidade sexual pensada de maneira essencializada. Eu também não sei direito, às vezes eu, você sabe. Mas é estranho não saber. Acho que ninguém sabe. Deve ser mais confortável fingir que sim ou que não, você delimita. Mas acho que aqueles que acham que são homossexuais compreendem melhor essas coisas. Tal maneira de constituir a própria identidade sexual, caracterizada por hesitações, por recusas a identidades pré-determinadas, por uma postura irônica e mesmo paródica frente aos comportamentos sexuais, e por uma moralidade que desafia os preceitos sociais pautados em uma heterossexualidade presumida, é que torna possível afirmar que o enfoque está filiado a um modo liberal – não libertino – de pensar as práticas sexuais e as identidades gendradas.
É aí que o diferencial do investimento crítico em uma categoria como a focalização emerge, permitindo escamotear pressupostos falaciosos como os de que o anônimo configura a priori uma instância neutra de articulação discursiva. Dado ser uma função textual, o anônimo pode até não estar, explicitamente, declinado na diferença de gênero ou de orientação sexual; contudo, a partir das escolhas e valores articulados por nós, bem como através das modulações do discurso, é possível vislumbrar que contingências identitárias são refratadas. Aceitar a identidade homossexual como uma identidade menor ou minoritária implica subordiná-la à heterossexualidade. Dito de outra maneira, ela perde seu caráter positivo de diferença e passa a ser a exceção que confirma a regra, permitindo à heterossexualidade tomar o lugar de regra a partir da abjeção das outras sexualidades e práticas sexuais. Recusar tal binarismo significa investir politicamente na textualização da liminaridade das identidades sexuais, desestabilizando assim o caráter de auto-evidência da heterossexualidade.
Longe das práticas de jogar o jogo de jogar o jogo, o anônimo encontra novas possibilidades de sobrevivência social, possibilidades além dos jogos heteronormativos e das identidades sexuais estáveis. Trata-se de uma heterotopia, no sentido atribuído ao termo por Michel Foucault. A heterotopia é um conceito acerca dos espaços outros, os quais, pertencendo ao mundo em geral, afastam-se dele simultaneamente pela alteração das convenções estabelecidas no mundo. Se a utopia é um espaço sem lugar no real, a heterotopia pode ser entendida, ao menos didaticamente, como uma utopia realizada. Ela é a contraposição ao mesmo tempo múltipla, laica, real e concreta à irrealidade e ao caráter imaginário das utopias. A heterotopia é o lugar no qual a ordem social é invertida, anulada, colocada em suspenso. Para utilizar uma noção já conhecida nos estudos literários, a heterotopia carnavaliza as regras e os códigos sociais vigentes. De acordo com Michel Foucault: Há em qualquer civilização, lugares reais, lugares efetivos, lugares que são delineados na própria instituição da sociedade, e que são espécies de contra-posicionamentos, espécies de utopias efetivamente realizadas nas quais os posicionamentos reais, todos os outros posicionamentos reais que se podem encontrar no interior da cultura estão ao mesmo tempo representados, contestados e invertidos, espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora eles sejam efetivamente localizáveis. Esses lugares, por serem absolutamente diferentes de todos os posicionamentos que eles refletem e dos quais eles falam, foram cunhados, em oposição às utopias, de heterotopias. Segundo o raciocínio de Foucault, tanto o cárcere no romance de Manuel Puig como a cidade de Recife, podem ser lidas como o lugar das heterotopias nas quais o princípio das iniqüidades de raça, classe, gênero e orientação sexual são colocadas em suspenso, permitindo a articulação de novos arranjos sociais.

Abraços.

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