quarta-feira, 26 de maio de 2010

Cartas – 16 Vernáculo das intemperânças

Caro Amigo,

Mesmo se eu fosse um réptil eu ainda teria o poder de amar. Se colocassem um outro corpo deitado no tapete do quarto, como, por exemplo, daquele senhor de olhar maduro, eu copularia com ele e ainda ia querer mais. Ao considerarmos que essa identidade é somente um jogo, é somente uma conduta para favorecer relações sociais e relações de prazer sexual que criam novas amizades, então ela é positiva.
Existe, pois, um outro universo de relações especificamente voltado para as expressões da vida e dentro de uma dinâmica criativa. Mais precisamente, a amizade surpreendida na comunidade de intemperanças. Assim, o revigoramento da amizade cingida na criação literária emerge como promessa de sentidos, dado o seu imaginário rico de relações cultivadas pelas progressivas formas de convívio.
Não há uma pretensão de postulação; mapear a identidade para mantê-la em função de determinados fins, pois o sentido não permeia esse ideário. A reconstrução do mundo revolve pelo avesso e vai se reformulando como se não houvesse leis, ordem, centro, opondo-se a todo um moral arraigado do que se convencionou tomar por bom, belo e justo.
Brecht, Clarice Lispector, Kafka, etc. todos e cada um deles, ao abdicar da beleza, da piedade e da limpeza, reordenam o vernáculo que dão a ler o exercício de si na tarefa de ultrapassar a tessitura que comunga com os morais-arraigados, de modo a reivindicar a liberdade de reconstruir o sujeito e o mundo. Essa perícia é alcançada para marcar um novo olhar. Um olhar o mais próximo possível dos sentidos da vida, distante da realidade, é verdade, mas legando ao sujeito e ao objeto, ao eu e ao outro, ao corpus uma inteligência de reflexão. Não se pode esquecer que quanto maior o estágio de minúcias e de elos emocionais das descrições, mais o assunto e as sensações que se procuravam produzir parecem escapar. As formas de vida são, portanto, agenciadas com a liberdade e inseridas nas dinâmicas das relações de amizade homoeróticas propiciando ler a amizade como um estilo de vernáculo.
A simples disseminação do erotismo revela a voz na afetividade das amizades masculinas como forma de prazer, como forma de saber e de conhecer o outro. A postura do sujeito do vernáculo se lança despudorada ao manipular o já-dito, em outras palavras, o acesso à vida sexual entre homens na história é reinventado.
O silêncio, por outro lado, solicita significação. A percepção da amizade é passível de questionamento quando submetida a outros jugos de valores, de ética, de retórica, ou seja, como as relações homoeróticas, tecidas na rede das vias do pertencimento e da exposição vernacular, são premissas de argumentação? Talvez pela expressão de uma amizade nutrida pelos discursos da transitoriedade, da ausência de experiência de si, dos sentidos da viagem, da deriva, das imagens de si que integram o patamar da posição do sujeito da sexualidade e com o qual ele se constitui. São discursos cingidos pela tensão entre o indivíduo e a sociedade, insuflando um hiato onde a subjetividade coletiva permite a construção de interatividades e com elas associar-se à idéia de a amizade ser também construída pelas práticas de libertação.
“a liberdade que acolhe, consente, diz sim, não pode dizer senão sim e, no espaço aberto por esse sim, deixa-se afirmar a decisão desconcertante da obra, a assertiva de que ela é – e nada mais”
Maurice Blanchot , 1987.
Mas a sociedade institui limites ao sujeito e os distingue: posição social, classe, educação, credo, gênero, etc. destituindo todas as relações criativas. Por certo, inclui as amizades, dadas por um plano privado do indivíduo, fora de toda significação política. Claro, a questão da sexualidade homoerótica privou-se desse parâmetro, principalmente pela condição sexual contida no silêncio, referindo-se a eles como mal integrada em uma comunidade frente ao amor, são, em verdade, comunidade de intemperanças.

Abraços.

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