quarta-feira, 26 de maio de 2010

Cartas - 15 Destemperanças

Caro Amigo,

 . . . O sofrimento é um momento eterno. Não podemos dividi-lo por estações. Podemos apenas relembrar o seu tom e a sua recorrente narrativa. Conosco o próprio tempo não floresce. Ele rodopia. Parece cingir em um doloroso epicentro. É a imobilidade paralisante de uma vida marcada por cada circunstância ocorrida em sucessão que não pode ser revertida, de modo que nós comemos, e bebemos, e deitarmos, e rezamos, ou ajoelhamos, pelo menos, para orarmos, dependendo da inflexibilidade de leis da sociedade que as regem: essa qualidade imutável, que faz com que cada dia, nos seus mínimos detalhes, se assemelhe com os dias conseqüentes, parecem trair-se com as forças externas, com a essência da existência cuja constante é a mudança, o aprendizado. Do tempo de semear e colher; do silêncio e da palavra; do perdão e da culpa; do jogo da sedução; da amizade em Aristóteles; dos olhos, das mãos, dos dentes; de Riobaldo e Diadorim: Destes nada sabemos e nada poderemos saber.
. . . A consciência que se indagou sobre si mesma pela voz de PK, e por isso se dividiu, é uma consciência de linguagem,(...)  se PK remeteu à inconfidência e à desistência e suas tessituras, é PK ainda, que, ao traduzir um momento de incerteza e de preparação entre o início e o fim, terminou traduzindo o gesto poético pelo qual foi também", acrosticamente, traduzido. . .
. . .
Marcada está de amor minha fantasia,
A mais que pode ser vencida em vida,
Raras vezes em que se viu tão bem perdida;
Contente deste bem, louvo sua senhoria,
Oferecendo tudo a vosso intento.
Sujeito a vos servires instituído,

Sete vezes desejando a tal ferida,
Iluminado renovar meu perdimento.
Murmurando só para vós rara fraqueza,
A causa que me guia nesta vida.
Ou ser no vosso amor achado em falta.
. . .                                                                 PK

Para nós existe apenas uma estação, a estação do desalento. O sol e a lua nos foram tomados. Lá fora, o dia pode ser azul e dourado, mas a luz que entra através do vidro grosso, abafada pelas barras de ferro da pequena janela diante de mim, é cinzenta e mesquinha. É sempre crepúsculo neste claustro, como é sempre o crepúsculo no coração. No domínio da reflexão, não menos do que no domínio do tempo, não há mais movimento. A única coisa que você, pessoalmente, há muito tempo esqueceu, ou pode facilmente esquecer, está acontecendo comigo agora, e vai acontecer comigo de novo amanhã. Lembre-se disso, e você será capaz de entender um pouco por que eu estou escrevendo e com essa contextura. . .
Prosperidade, prazer e sucesso, podem ser de difícil tessitura, mas o desalento é a mais sensível de todas as coisas criadas. Não há nada que se move em todo o mundo da reflexão na qual a tristeza e o desalento não façam vibrar em uma terrível e requintada pulsação. A suave queda das folhas de um dourado tremulante que narra à direção das forças que os olhos não podem ver é uma comparação grosseira. É uma ferida que sangra de qualquer lado, mas não a que toca o amor, mesmo assim sangra novamente, mesmo sem dor. Onde há sofrimento há terreno sagrado. Algum dia as pessoas vão perceber o que isso significa. Elas não saberão nada sobre a vida até elas viverem. A questão é: como sua natureza pode perceber isto?
Encontro, algures na minha natureza, alguma coisa que me diz que não há nada no mundo que seja desprovido de sentido, e muito menos o sofrimento. Essa qualquer coisa, escondida no mais fundo de mim, como um tesouro num campo semeado, é a humildade. A última coisa que me restou, a melhor, foi à descoberta definitiva de que eu cheguei ao ponto de partida para um novo florescer. Despertou de mim, então eu sei que veio na hora certa. Não poderia ter vindo mais cedo, nem mais tarde. Se alguém tivesse me contado, eu teria rejeitado. Se tivesse sido me trazido, eu teria recusado. Como eu a encontrei, eu quero mantê-la. Devo fazê-lo. É a única coisa que tem em si os elementos da vida, de uma nova vida, vida nova para mim. De todas as coisas é a mais estranha. Não se pode adquiri-la, exceto por render tudo o que se tem. É somente quando se perde todas as coisas, que se sabe o que a possui.
Agora eu percebi que está em mim, eu vejo claramente que eu devo fazer, na verdade, devemos fazer. E quando eu uso essa contextura, eu preciso dizer que eu não estou fazendo alusão a qualquer sanção ou comando externo. Eu não admito. Eu sou hoje muito mais individualista do que eu jamais fui. Nada me parece de menor valor, exceto o que sai de mim mesmo. Minha natureza está buscando um novo modo de auto-realização. Isso é tudo com que estou preocupado. E a primeira coisa que eu tenho que fazer é me livrar de qualquer possível sentimento de amargura. E eu realmente não terei dificuldades. Quando você realmente quer amar você irá encontrar o amor esperando por você.
Desnecessário dizer que minha tarefa não termina aqui. Seria relativamente fácil se o fosse. Há muito mais perante mim. Tenho montanhas íngremes para escalar, vales sombrios para passar. E eu tenho que começar em mim. Nem a religião, a nem moral, nem a razão podem, de maneira alguma, me ajudar.
A religião não me ajuda. A fé que os outros tem ao que é invisível, eu tenho ao que pode ser tocado e visto. Meus deuses habitam templos feitos à mão, e dentro do círculo da experiência real, a minha crença é perfeita e completa: muito completa, e talvez, como a de muitos ou de todos aqueles que situam o céu na terra, eu  tenha encontrado não apenas a beleza do céu, mas também o horror do inferno.
A razão não me ajuda. Ela me diz que as leis morais sob as quais sou condenado por destemperança, estão erradas e são injustas, e o sistema sobre o qual sofro é um sistema injusto e errado. Mas, de alguma forma, eu tenho que transformar essas duas coisas em algo justo e certo para mim. Exatamente, como na arte, há uma única preocupação com uma coisa em particular, um momento especial, por isso, é também uma evolução ética do caráter pessoal. Eu tenho de transformar tudo o que aconteceu comigo em algo bom para mim. A cama, a comida, o trabalho de cada dia - começa e termina - as ordens, a rotina, o desalento, o olhar, o silêncio, a solidão, a vergonha. Cada uma e todas essas coisas eu tenho que transformar em uma nova experiência. Não há uma única degradação do corpo que não devo tentar transformar.
Estou consciente ainda que por trás de toda a beleza, e com toda satisfação que possa transparecer, há algum espírito oculto onde as pinturas e as formas são apenas modos de manifestações e, é com esse espírito que eu desejo me harmonizar. Eu cresci e me cansei de articular a linguagem entre homens e coisas. O misticismo na arte, na vida e na natureza é o que estou procurando. É absolutamente necessário que eu o encontre em algum lugar.
Chego a um ponto em que sou capaz de dizer simplesmente, e sem afetação, que os dois grandes momentos na minha vida foram quando meus pais me trouxeram a vida, e quando a sociedade me cerceou os prazeres da vida. Não vou dizer que esta clausura é a melhor coisa que poderia ter me acontecido: porque a linguagem teria sabor de amargura. Prefiro dizer, ou ouvir dizerem de mim, que eu sou uma típica criança da minha idade, que na minha destemperança, e por causa dela, estremeci; eu virei as coisas boas da minha vida para o mal, e as coisas más da minha vida para o bem.
O que é dito, no entanto, de mim pelos outros, pouco importa. A coisa mais importante é a que está diante de mim, a coisa que eu tenho que fazer, se o resto dos meus breves dias não podem ser mutilados, desfigurados e incompletos, é da minha natureza absorver tudo o que tem acontecido, para torná-los parte de mim, e aceitar sem reclamar, sem medo ou relutância. A virtude suprema é superação. A qualquer tempo.
Todas as experiências são referências para uma vida, assim como todos os sofrimentos são sentenças de morte, e três vezes fui sentenciado. Pela primeira vez por ter superestimado a razão, pela segunda vez por ter acreditado nos sentidos da linguagem e no seu poder de persuasão, pela terceira vez por ter sido relegado ao silêncio, sem perdão. Na sociedade, como a constituímos, não há lugar para mim, não tem nada a me oferecer, ao contrário da natureza, com suas doces chuvas que caem sobre as injustiças, como também produz fissuras nas rochas onde eu possa me esconder e vales secretos onde eu posso chorar em silêncio. Ela me prove as noites estreladas para que eu possa andar através da escuridão sem tropeçar, e enviar o vento sobre as minhas pegadas para que ninguém possa acompanhar a minha dor: ela me purificará em águas cristalinas e, com algumas ervas, me fazer inteiro novamente.
Abraços.


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