quarta-feira, 26 de maio de 2010

Cartas – 19 Eu, você e platão

Caro Amigo,

Reclinar-me-ia ao seu lado, ao seu contato desfrutar-me-ia da sua sabedoria e, de tal sorte, a sua sabedoria escorreria em minhas entranhas, como a água dos copos que pelo fio escorre do mais cheio ao mais vazio. Se assim for à sabedoria, muito apreciaria deitar-me ao teu lado e cumular vasta e bela sabedoria. Ordinária, no entanto, seria a minha, enquanto a sua, brilhante, exuberante. Com efeito, não poderia dizer que há maior bem para o bom-amante do que o seu bem-amado.
Diferente do amor que nasce do ardor de alguns heróis, o amor dá aos amantes um dom emanado de si mesmo. Mas, a maior honra é a virtude que se forma em torno do amor, mais ainda, quando é o amado que gosta do amante mais do que o amante gosta do amado. Porém, o amor não é todo belo e digno de ser louvado, mas apenas o que o leva a amar belamente. Considero, pois, ser mais belo amar claramente que às ocultas. Onde, afinal, se estabeleceu que é feio o aquiescer aos amantes? Por defeito dos que assim estabeleceram, graças à covardia, ou foi em conseqüência da inércia dos que assim estabeleceram. De toda sorte, o encorajamento aos amantes é extraordinário e não algum ato feio, se há uma conquista, o seu ato é belo e, ainda, sua tentativa de conquista ao amante à possibilidade de ser louvado na prática de seus atos.
A meu ver, isso não é uma coisa simples, como foi dito, não é o amor em si e por si belo ou feio, mas se decentemente praticado é belo. Amar o corpo mais que a alma não é, entretanto, constante, por amar um objeto que também não é constante. Resta então um só caminho, deve o bem-amado decentemente aquiescer ao amante, assim quando se presta servidão ao amado, não se tem um ato censurável, pois se aceita a servidão pela virtude. Servir ao outro por julgar que se transformará em uma pessoa melhor, ou em sabedoria ou em qualquer outra espécie de virtude, não é feio nem é uma adulação.
É preciso então congraçar num mesmo objetivo essas duas faces, a do amor aos homens e a do amor ao saber e às virtudes, ao considerarmos ser belo o aquiescer o amado ao amante, chegam ao mesmo porto amante e amado cada um com a sua face, servir ao amado que lhe aquiesce, em tudo que for justo servir, e ajudando ao amante tornar-se sábio e bom, em tudo que for justo ajudar. Ao amado cabe contribuir para a sabedoria e demais virtudes, ao amante em precisão da sabedoria e da virtude. Quando o mesmo objetivo converge essas duas formas coincidem ser belo o aquiescer o amado ao amante, e em mais nenhuma outra ocasião.
Dizem alguns, é verdade, que os amantes são despudorados, mas estão enganados; não é por destemperança que se tornam amante, mas por audácia, coragem e masculinidade, porque acolhem o que lhes é semelhante. Quando então se encontra com aquele que é a sua própria metade, tanto o amante como qualquer outro, então extraordinárias são as emoções que sentem, de amizade, intimidade e amor, a ponto de não quererem separar-se um do outro, nem por um pequeno momento.
A ninguém teria o efeito de se tratar de uma união sexual, ao contrário, alguma coisa quer a alma de cada um, é evidente, que coisa é essa a união não pode dizer, mas adivinha e a indica por enigmas. Homem ele é, mas além de homem ele é belo. Falta-lhe, porém um poeta como era Homero para mostrar sua beleza de deus. É na beleza da sua pele que o seu viver entre flores o bem atesta, onde houver lugar bem florido e bem perfumado, o amor se assenta e fica.
A temperança é o domínio sobre prazeres e desejos. Ao amor, nenhum prazer é predominante. Se inferior, seria dominado pelo amor, e dominando os prazeres e os desejos o amor seria excepcionalmente temperante. Cabe lembrar que o amor é um bom poeta, como, em geral, o é em toda criação artística, pois o que não se tem ou o que não se sabe, também a outro não se poderia dar ou ensinar. Sabe-se que a poesia é múltipla, pois passa do não-ser ao ser poesia, de modo que as confecções de todas as artes são poesias, e todos os seus artesãos poetas.
Concebem-se assim, na Philía, os guerreiros que, morreriam em favor da realeza dos filhos, se não antes por uma virtude imortal e por tal renome e glória que todos tudo fazem, e quanto melhor tanto mais, pois é o imortal que eles amam. Concebem-se, também, aqueles fecundados em seu corpo e voltam-se de preferência para as mulheres, são amorosos pela procriação, conseguindo para si imortalidade, memória e bem-aventurança por todos os séculos seguintes. Mas há os que concebem em Eros a alma, mais do que no corpo, o que convém conceber e gerar, lhes convém senão o pensamento e a virtude. Entre estes estão os poetas e os artesãos. Assim são os homens belos eles acolhem, por estarem em concepção. Ao encontrarem uma alma bela, nobre e bem dotada, para um homem desse ele logo se enriquece de discursos sobre a virtude, sobre o que deve ser o homem bom e o que deve tratar, e tenta educá-lo, pois ao contato, sem dúvida, do que é belo e em sua companhia, o que há muito ele concebia então, dá à luz e gera, sem o esquecer, tanto em sua presença, quanto em sua ausência, e o que foi gerado, ele o alimenta justamente com esse belo homem, de modo que uma comunidade, muito maior que a dos filhos, ficam tais indivíduos mantendo entre si e, uma amizade mais firme, por serem mais belos e mais imortais os filhos que têm em comum, por terem dado à luz muitas obras belas e gerado toda espécie de virtudes. Deles já se fizeram muitos cultos por causa de tais filhos, enquanto que da Philia ainda não se fez nenhum.
Poderia ser, pois, em Eros os casos de amor em que você pudesse ser ou ter sido iniciado, em sua perfeita contemplação, mas, diante desses diferentes graus de amizade, quando procedidos corretamente, não sei se seria capaz. Em todo caso, eu direi e nenhum esforço pouparei. Siga-me se for capaz. Caminhar a este fim é começar a dirigir-se ao belo corpo e se corretamente dirigir-se, deve ama-lo e, então gerar belos discursos. Compreender que a beleza de qualquer corpo é irmã da beleza de outros corpos e, ao se procurar o belo na forma, muita tolice seria não considerar a beleza em todos os corpos. Ao entender isso, fazer-se amante de todos os belos corpos e largar esse amor violento e mesquinho de um só corpo. Considerar, então, que a beleza da alma é mais bela que a do corpo, mesmo que alguém de alma gentil se encante, contente-se, ame, se interesse, produza e procure discursos que tornem outros melhores, então se obrigue a contemplar no ofício e nas leis suas semelhanças. Julgar, pois, de pouca significância a beleza dos corpos. Depois dos ofícios, transporte-se então para a beleza das ciências e olhando para o belo, já há muito sem amar a beleza individual de um corpo, de um homem ou de um só costume, não se amarre nessa escravidão miserável e de um mesquinho discurso, mas volte ao vasto oceano do belo pois é inesgotável o amor à sabedoria.
Quando então, subindo a partir do que aqui é belo, do correto amor aos homens, comece a contemplar aquele belo e estaria a atingir o ponto final. Em que consiste, afinal, o proceder corretamente nos caminhos do amor ou por outro se deixar conduzir. Comece do que aqui é belo e, em vista deste belo, suba sempre, como que servindo-se de degraus, de um só para dois e de dois para todos os belos corpos, e dos belos corpos para os belos ofícios, e dos ofícios para as belas ciências até que das ciências acabe naquela ciência, que nada mais é senão o próprio belo. A essa altura da vida, meu caro, você poderia viver a contemplar o próprio belo.
Se, algum dia, eu o vir, não será como ouro ou como a roupa que parece ser, ou como o belo corpo, cuja vista fico agora aturdido e disposto. Como outros muitos, contanto que o veja, sempre estarei ao seu lado, nem a comer nem a beber, se de algum modo fosse possível, mas a só contemplar seu corpo e estar ao seu lado. Que pensa então que aconteceria se ocorresse ao contemplar o próprio belo, nítido, puro, simples, e não repleto de carnes humanas, de cores e outras muitas ninharias mortais, mas pudesse contemplar o próprio belo divino em sua forma única? Sentiria diante de você, somente diante de você, o que ninguém imaginaria haver em mim, o envergonhar-me de quem quer que seja. Ora, é diante você somente que me envergonho.
Safo-me então de sua presença e fujo, e quando o vejo envergonho-me pelo que admiti. E muitas vezes sem dúvida com prazer o veria não existir entre os homens, mas, se por outro lado tal coisa ocorresse, bem sei que muito maior seria a minha dor, de modo que não sei o que fazer. Sei, no entanto, que nem ao quem é belo você tem consideração, antes despreza tanto quanto ninguém poderia imaginar, nem a virtude, nem a amizade, todos esses bens você julga que nada valem, e que nós nada somos - a que digo - é ironizando e brincando com os homens que você passa a vida.
Uma vez porém que fica sério e se abre, vejo as estátuas em seu interior. Eu por mim já uma vez as vi, e tão divinas me pareceram elas, com tanto aura, com uma beleza tão completa e tão extraordinária que eu só tinha que fazer imediatamente o que me mandasse. Julgando, porém que estava interessado em minha beleza, considerei um achado e um maravilhoso lance da fortuna, como se me estivesse ao alcance, depois de me aquiescer a você, ouvir tudo o que sabia. O que, com efeito, eu presumi da minha beleza algo extraordinário! Com tais idéias em meu espírito, eu que até então não costumava sem um acompanhante ficar só com você, dessa vez, despachando o acompanhante, encontrei-me a sós e pensei que logo ele iria tratar comigo a que um amante em segredo trataria com o bem-amado, e me rejubilava. Mas não, nada disso absolutamente aconteceu, ao contrário, como costumava, se por acaso, comigo conversasse e passasse o dia, você silenciou-se e foi-se embora.
Depois disso convidei-o a fazer exercícios comigo e entreguei-me a tais exercícios, como se houvesse então de conseguir algo. Exercitou-se comigo e comigo lutou muitas vezes sem que ninguém nos presenciasse. E que devo dizer? Nada me adiantava. Como, por nenhum desses caminhos eu tive resultado, decidi que devia atacar-me a você à força e não largá-lo, uma vez que eu estava com a mão na obra, mas logo saberia de que é que se tratava. Convido-o então a jantar comigo, exatamente como um amante armando cilada ao bem-amado.
Bem, até esse ponto do meu discurso ficaria bem fazê-lo a quem quer que seja. Mas o que a partir daqui se segue, você não me teria ouvido dizer se, primeiramente, como diz o ditado, no vinho não estivesse à verdade. E depois, obscurecer um ato seu excepcionalmente brilhante, quando saí a elogiá-lo, parece-me injusto. E ainda mais, a dor da mordida da víbora é também minha. Dizem que quem sofreu tal acidente não quer dizer como foi senão aos que foram também mordidos, por serem os únicos que a compreendem e desculpam de tudo que ousou fazer e dizer sob o efeito da dor. Eu então, mordido por algo mais doloroso, e no ponto mais doloroso em que se passa ser mordido. Engana-se fazendo-se de amoroso, enquanto é antes na posição de bem-amado que você mesmo fica, em vez de amante.

Abraços.

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