sábado, 22 de maio de 2010

Cartas – 8 Construindo uma história. pelo sim ou pelo não.

Caro Amigo,

Entre Riobaldo e Diadorim.
Homem muito homem fui, e homem por mulheres! – nunca tive inclinação pra aos vícios desencontrados. Repilo o que, o sem preceito. Então – o senhor me perguntará – o que era aquilo? Ah, lei ladra, o poder da vida [...] Mas eu gostava dele, dia mais dia, mais gostava. Diga o senhor: como um feitiço? Isso.
Feito coisa feita. Era ele estar perto de mim, e nada me faltava. Era ele fechar a cara e estar tristonho, e eu perdia meu sossego. Era ele estar por longe, e eu só nele pensava. E eu mesmo não entendia o que aquilo era? Sei que sim. Mas não.
E eu mesmo entender não queria. Acho que. Aquela meiguice [...] o cheiro do Antonio de Pádua Dias da Silva corpo dele, dos braços, que às vezes adivinhei insensatamente – tentação dessa eu espairecia, aí rijo comigo renegava.
(Riobaldo, personagens de Grande Sertão Veredas – Guimarães Rosa)
A questão que se apresenta é a problematização do gênero e dos aspectos da cultura falocêntrica, masculinista e machista e o profundo processo de crise do homem valente associadas ao cabra macho da sociedade contemporânea, como Riobaldo, quando este tem consciência do desejo que sente pelo outro do seu afeto – Diadorim, sujeito pertencente ao mesmo gênero e sexo que ele. Diadorim não só, para todos do “bando” a que pertence Riobaldo, é homem (conceito histórico-cultural) como também, e por analogia e extensão da base “filosófica” que determina o gênero (homem, mulher, gay), é biológica ou sexualmente macho, daí o caráter de pertencimento ao grupo de que faz parte.
O sentido de pertencimento na construção desta narrativa é uma fabulação em torno de um ideal de homem. Essa narrativa é constantemente atravessada por marcadores culturais que literalmente determinam o ser-homem nesse universo, ou seja, a virilidade, a força física, a esperteza, a astúcia, a argúcia, a honra, a vingança, o sobrepor-se aos fenômenos da natureza, o gostar de mulher, “ter palavra” e outras características que, agregados a estes, expõem o panorama do ser-homem. Percebe-se que estereótipos em torno do ser-homem, ser-mulher e ser-gay estão muito bem demarcados, do ponto de vista da cultura, de forma que se reafirmavam os padrões heterossexuais da sociedade misógina e machista como se comportou, ao longo de sua história, o homem brasileiro. História esta ainda em moda ou em vigor da cultura falocêntrica, centrada em práticas extremamente misóginas, machistas, segregadoras dos diferentes e mantenedoras de discursos que negavam especificamente os diferentes sexuais.
Porém, o comportamento de um sujeito para com o outro do mesmo sexo, no campo afetivo-emocional, pode ser dividido em três etapas, garantidas, cada uma delas, pelo aspecto amizade, assim classificados: 1) amizade masculina (em que não se menciona a idéia afetiva do ponto de vista erótico e/ou libidinal); 2) o amor de amigos (estágio intermediário em que há a sublimação do desejo, do ponto de vista espiritual, pelo outro do mesmo sexo); e 3) a homossexualidade (em que os sujeitos envolvidos na relação transgridem as normas ou valores culturais que regem o código afetivo-sexual. Nesta relação, mesmo que não haja o atrito corporal, o desejo pelo outro deixa de ser latente e expande-se para o campo visível das práticas comportamentais).
Não são simplesmente características de uma ação mimética ou uma redução do mundo social ao eu, como na tradição cartesiana. Ela é, ao contrário, a ampliação dos sistemas de relações dados por meio da aproximação e da adaptação ao mundo social. Exatamente essa característica rendeu ao conceito de mimese na modernidade a má fama de ser um tipo de repetição automática ou uma adaptação a um modelo. No entanto, esta avaliação não vê que semelhança também significa diferença. Assim, o desejo de tornar-se o outro leva o homem a assemelhar-se ao outro e ao mesmo tempo diferenciar-se dele.
Essa tentativa de justificar o desejo homoerótico comparece em Grande Sertão Veredas sempre que Riobaldo “é tomado” pelo pensamento do amor dedicado a Reinaldo/Diadorim, é invadido pelo sentimento de culpa e ele procura justificar o endereçamento do sentimento nutrido no intuito de que a culpa não lhe seja imputada.
Assim, longe de se sentir culpado por esse aspecto oriundo da tradição judaico-cristã, Riobaldo é invadido pelo sentimento do não-pertencimento, pois a sociedade de que faz parte adota como valores de vida cotidiana a virilidade, a valentia, traços “psíquicos” superficialmente entendidos como apenas de domínio dos homens.
Para que não fosse flagrado, por si e pelos outros, no envolvimento com o sentimento que dele transborda para Reinaldo, a todo o momento procura caracterizar o outro do seu afeto com um perfil feminino, ou seja, no contexto sociocultural em que se encontra não pode demonstrar fraqueza, principalmente a fraqueza moral, que seria amar um sujeito do mesmo sexo. Então, na tentativa de livrar-se dessa culpa moral, descreve traços femininos em Diadorim, numa tentativa de isentar-se dessa “culpa” e manter o ideal de pertencimento da cultura virilizante.
Nesse contexto, o ser-homem constantemente questiona a si próprio, pois a posição que ocupa, o lugar de onde fala com os companheiros da mesma sina produzem discursos homofônicos que castram qualquer idéia que possa, por parte de um dos sujeitos envolvidos lembrar o estereótipo feminino, uma vez que ser-homem é ser “cabra macho, sim senhor” e este não pode, pela lógica que rege a cultura vigente, permitir que nenhum traço ou marca feminina interfira na confiança que os demais membros do bando têm naquele que é instrumento de equilíbrio na estrutura interna do grupamento.
Por ter a consciência do desajuste que poderia causar ao bando/sociedade é que o personagem, num ato auto-punitivo, constantemente questiona o seu sentimento pelo outro do seu afeto, utilizando-se de termos que convergem para um dos contextos homofóbicos mais negativos que a cultura heterossexual contemporânea já produziu: “Se Diadorim segurasse em mim com os olhos, me declarasse as todas as palavras? Reajo que repelia. Eu? Asco!”
A transgressão cultural do personagem é motivo de desequilíbrio psíco-cultural no momento em que, depois de aperceber-se de que o sentimento internalizado ultrapassou os limites da apenas amizade, procura a todo custo rejeitar Reinaldo. O paradoxo desse comportamento pode ser verificado através da formas verbo-nominais que impelem o leitor para significados extremamente negativos, que se coadunam com a idéia de estranho/estrangeiro: repelir, rejeitar, asco. Os três significantes apontam para um ponto semântico comum: a idéia de expelir, de lançar para fora de si aquilo que, embutido na idéia do estrangeiro, pertence ou está em nós mesmos.
A construção da atitude ambivalente e paradoxal em Riobaldo denuncia uma angústia do sujeito humano que, culturalmente interpretado, move-se entre o entregar-se ao outro do seu afeto ao mesmo tempo em que o nega naquilo que é motivo de negação de sua masculinidade, ameaça a sua virilidade, rebaixamento de sua moral de ser-homem.
Assim, caro amigo,
Se a heterossexualidade e a homossexualidade são máscaras de pertencimento e de exclusão sociocultural, parece que necessitamos de ambas para melhor sobreviver nas veredas que compõem o nosso grande sertão, pois, se não é possível ao ser-homem desempenhar os papéis que lhe cabem no teatro da vida sem o uso de máscaras, é necessário conhece-las melhor para utilizá-las de modo adequado e eficiente, evitando os indesejáveis e sempre danosos efeitos colaterais. É evidente que a máscara heterossexual é a que lhe angustia, pois exerce, na sociedade, esta face de sua identidade, todavia se compraz no amor–rejeitado, negado, velado – por outro sujeito do mesmo sexo.

Abraços.

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