quarta-feira, 26 de maio de 2010

Cartas – 18 Dostoiévski e eu

Caro Amigo,

Eu sou um homem ridículo. O que significaria ganhar em consideração, se não continuasse a ser um homem ridículo. Seria prazeroso acompanhar os risos alheios se as minhas expensas não os fossem, mas pelo carinho que me inspiram, senão por todos, um sentimento de pena. Eu sempre fui ridículo, na escola, na universidade e quanto mais aprendia, mais reconhecia a minha condição de homem ridículo. Os objetivos de meus estudos não seriam outros senão demonstrarem, em minhas narrativas, o ser ridículo que sou. Minha culpa. O meu orgulhoso não permitiria, por nada, ter confessado, se pelo menos tivesse me permitido confessar a alguém, a qualquer um.
Nesse momento, talvez por sentir impetrado em minha alma, o receio e a consciência de um conhecimento que, humanamente, era mais elevado que o meu, uma convicção assentou-se no meu espírito de maneira inesperada. Subitamente senti uma indiferença sobre tudo, não me interessava mais a existência ou não desse mundo.
Aos poucos fui tomado pelo sentimento de que nada havia fora de mim, como também o nada haveria diante mim. Desde então deixei de me preocupar com os homens e não mais voltei a prestar-lhes atenção. Esta indiferença afastaria espontaneamente os problemas de mim. Em verdade, ainda me lembro, passei a sentir hostilidade contra os homens. Calei-me, silenciei-me ao calcular que a minha presença os aborrecia.
Mas sucedeu-me, então, enquanto olhava ao léu, que alguma coisa me golpeou. Estranho, a rua da minha vida já estava deserta, completamente deserta, e não se via uma alma viva sequer por aqueles arredores. Esta coisa saltou-me à vista de um modo estranho. Voltei a olhá-la, mas não disse nada e segui o meu caminho, essa coisa deitou a correr atrás de mim e denotar seu desespero. Ainda que o conflito não se exprimisse claramente por palavras, então cessou, e deitou-se a correr deixando-me para importunar outro.
Em verdade, desde sempre me esquivei do convívio, qualquer que fosse, o quanto pude, pois isto me era indiferente. Sento-me agora e nem se quer penso em nada, apenas deixo o pensamento vaguear com indiferença, mas sinto uma dor, sim sinto. Se me batessem agora, eu sentiria dor. Mesmo no território moral, se tivesse acontecido algo de triste, eu sentiria piedade, como antes de ter me tornar indiferente. Nesse momento me ocorreu que essa coisa me havia surgido como um problema para qual eu não teria encontrado uma resposta. Era uma pergunta ociosa, mas, no entanto, aborrecia-me. Percebi, então, que nem tudo me era indiferente.
Lembro-se da autêntica inspiração da piedade, e por ela sentir uma dor desconcertante, inverossímil e intempestiva. Esta é a minha situação: tenho um sentimento inexplicavelmente fugidio, mas pendular em minha alma. Meus sentidos estavam, então, a me trair, pois sou um homem e não um zero, ainda, pois vivo. Consequentemente eu me aborreço e sinto vergonha dos meus atos.
Eu poderia conscientemente deixar de existir e, claro, tudo iria também deixar de existir, porém, isto não teria a menor influência sobre o sentimento de piedade que inspira qualquer ser, nem sobre o sentimento de vergonha pela brutalidade em que uma pessoa tenha incorrido. Parecia-me evidente, neste momento, que a vida e o mundo dependiam quase unicamente de mim, mais ainda, que o mundo parecia ter sido criado para mim apenas, talvez todo esse mundo e todos esses homens sejam unicamente eu mesmo. Então, ocorreu-me uma estranha imagem: se eu tivesse cometido alguma ação irremediavelmente desonesta, a mais desconcertante que se pudesse imaginar e, decorrido essa ação, me tivesse aí ultrajado e desonrado, como só nos sonhos pode-se vivenciar, sob o influxo de um pesadelo incessante, a recorda-me do já-feito e do já-dito, sem retorno. Deveria eu ou não, pois, me envergonhar das milhas ações? Essas perguntas pungiam e me molestavam. Tinha certeza afinal da minha impotência perante esses problemas!
Com essa imagem em mente, sucedeu-me, de um momento para o outro, adormecer. Curioso, os sonhos são, de certo modo, coisas muito estranhas. Percebemos em alguns deles uma clareza assustadora, nos seus mínimos detalhes, como uma elaboração artística e, em outros passamos completamente ao largo, como se não existissem, assim como o tempo e o espaço. Os sonhos não se originam, de certo, da razão, mas do desejo. No entanto, sobre que coisas tão complicadas passam às vezes a minha razão, no sonho? Absolutamente incompreensíveis. Por que a minha razão não se revolta?
Por mais indiferente que fosse um sonho ou não o fosse, esse me havia revelado a verdade como se estivesse adormecido ou acordado. O meu sonho revelou-me uma nova vida, exuberante. Adormeci sem perceber, parecia-me continuar meditando acerca desses problemas. Ocorreu-me então, que não sentia mais a dor, tudo havia se partido ou desfeito numa treva pavorosa, sem poder me mover, mas apenas sentir e pensar. Minha resignação, obvio, não tardou, aceitei a realidade sem hesitar, pois, sozinho, o que poderia eu fazer ou dizer, absolutamente sozinho. Minhas idéias cingiam unicamente em torno das sensações de umidade e frio e, como em um sepulcro, não esperava mais nada, pois aceitava a idéia de nada ter a esperar. Senti, então, uma dor fria no coração, como pequenas gotas gélidas a cair minuto após minuto em meus olhos, então gritei com todo o meu ser.
Seja como for, mesmo que haja alguma coisa de mais razoável a ocorrer-me, a ordenar-me, a impor-se ao meu domínio, mas, a castigar-me pela insensatez de continuar a existir com o desprezo, com a indiferença que eu sentia em silêncio e depois calar-me. Conscientemente eu sabia de um modo infinito e inquebrantável, que tudo iria mudar imediatamente, esperava e sentia um orgulho imenso, sem medo, até me desfalecia em gozo só de pensar que não o tinha. Tudo acontecia com a coerência das coisas nos sonhos, rompendo as leis da razão, do espaço e do tempo e deparei-me diante de uma realidade que não era a de um ser vivente, mesmo assim uma realidade. Pensei, então, se tenho que viver outra vez e outra vez viver, por mandato do inexplicável, então que ninguém me vença ou me humilhe. Você sabe que tenho medo de você e diante da humilhante afirmação que traz em si a confissão, sinto em meu coração a dor do meu vexame. Algo emanado silenciosa e dolorosamente, sobre mim, me oprimi. A nostalgia me tortura.
De súbito, eu vi uma luz. Um saboroso e animador sentimento de prazer encheu minha alma pela força dessa luz, engendrou e repercutiu em minha alma e me ressuscitou, eu senti o renascer de uma vida, não menos apreciada e querida, mas inspirada no mesmo e doloroso amor, então exclamei, tremendo com um amor arrebatado, audaz, irreprimível. Um grito surgiu na minha memória, na qual perduram ainda as gotas daquele sangue, que infortúnio. Não sabemos amar de outro modo nem conhecemos outro amor. Eu quero a dor para poder amar.
A luz que cintilava pairava sobre as ilhas helênicas e cingiam contra elas um imenso, visível e quase inconsciente amor, junto a todo o esplendor da floração de suas inumeráveis flores, que me saldavam boas-vindas em um leve e amistoso sussurro e, murmurando-me ignoradas palavras de amor, estavam os filhos do sol; como eram lindos. Nunca eu vi homens tão belos, tão maduros, tinham rostos claros e cheios de luz. Transpareciam neles a inteligência e um saber completo até à tranqüilidade. No entanto, esses rostos respiravam um alvoroço especial: tanto as palavras como a voz desses homens demonstrava uma alegria pueril, não manchadas pelo pecado, porque não havia pecado na afetuosidade, sorriam-me e acariciavam-me e só ansiavam por afugentar do meu rosto, todo vestígio de dor. Mas admito, foi apenas um sonho.
Mas a sensação de amor que aqueles homens belos e inocentes me demonstraram ainda perdura em mim através do tempo, eu os vi, os conheci, os amei, e mais tarde, sofri por eles. Compreendi, desde o primeiro instante, que eu não poderia entendê-los, a ciência daqueles homens se nutria de conhecimentos diferentes, suas preocupações eram também de outra índole. Não aspiravam conhecer a vida, pois as suas vidas estavam completamente preenchidas, seu saber era mais fundo e elevado que a nossa ciência, ao passo que eles já sabiam como haveriam de viver, e isto percebo eu, por não compreender a sua ciência, eu não podia sentir do mesmo modo que eles a grandeza do amor com que contemplavam: tal como se as árvores também fossem homens, aqueles homens não se esforçavam para que eu os compreendesse, amavam-se sem necessidade disso, sem dizerem nada, sem se envergonharem de que eu os amasse ao mesmo tempo em que eles.
Não raro, indagava-me, como poderia eu suscitar tampouco um sentimento de inveja ou de ciúme, como também me perguntava, como se fosse um embusteiro e enganador, a razão de não lhes comunicar alguns dos meus conhecimentos, sobre os quais, naturalmente, desconheciam, e fazê-los cair no espanto, ou simplesmente anunciar meu amor por eles.
Percebi que os filhos gerados do amor entre eles jamais eram vítimas desse arrebatamento de cruel lascívia que se apodera de quase todos os homens desta nossa miserável realidade e, que constituem a única origem de quase todos os pecados da nossa humanidade. Nunca vi dor nem lágrimas naqueles homens, mas um amor exaltado até ao êxtase, a um fervor tranqüilo e puro.
O sentido de pertencimento entre eles e com todo era vital, não careciam de templos, assim não professavam crença alguma, mas a convicção do ápice de suas alegrias, dos limites alcançados na natureza, como gozo antecipado em suas almas. Plena comunicação havia entre eles e se amavam em uma vida de amor recíproco, uma grande vida, um amor universal. Por mais que entendesse eu não podia penetrar na totalidade dos seus sentidos. Por serem intangíveis para a minha razão, experimentei um entusiasmo estéril e às vezes excessivo, de tudo aquilo que eu tinha visto, nos sonhos da minha alma e nos meus sentidos. Confesso, por mais de uma vez o pôr do sol me arrancou lágrimas, pois sempre houve dor no meu ódio aos homens. Por que não podia eu odiá-los e perdoar-lhes? Por que me fazia sofrer amá-los e podia amá-los odiando? Sim, as vezes eu sentia pousar em mim o seu diáfano e aprazível olhar, trespassado de amor, sentia entre eles que também o meu coração se tornava puro e inocente como o seu, não lamentava não poder entende-los, ficava em silêncio adorando-os.
Mas as visões e as figuras reais do meu sonho conservavam entre si tal harmonia e eram tão perfeitas, tão encantadoras, sedutoras e belas, que, ao acordar, como é natural, não seria capaz de tornar a dar-lhes vida na nossa pobre linguagem. No meu sonho, não mais fiz do que cingir sentimentos forjados pelo meu próprio coração e que todas essas nuances os devia ter arquitetado depois, já desperto. Hilaridade, quando concordei com o que as minhas palavras provocavam, eu estava apenas dominado pelo sentimento do sonho e este único sentimento perdurava no meu coração, que sangrava.
Por isso tiveram, naturalmente, que empalidecer na minha consciência e desvanecerem-se, e talvez por isso me sentisse realmente obrigado a imaginar depois inconscientemente as nuances aos quais teria encomendado decididamente a missão de reproduzir, dado o meu apaixonado desejo, que era, de certo modo pelo menos, o sentimento principal. Mas, no entanto, por que não acreditar que tudo foi real? Pode ser mil vezes melhor, mais radiante e belo do que eu descrevo. Pode ser um sonho? Mas não é possível que o fosse completamente!
Olhe, vou confiar-lhe um segredo: talvez tudo isso, nem de longe sequer, pudesse ser um sonho. Pois sucedeu nisto algo do gênero: algo tão real até à saturação, que uma pessoa nem sequer poderia sonhá-lo! Poderia ser a minha alma responsável por ter engendrado esse sonho. Mas como poderia ela ter engendrado sozinha a terrível verdade que eu senti mais tarde? Como poderia eu imagina-la ou sonha-la com o meu coração sozinho? Seria possível que o meu insignificante coraçãozinho e a minha humilde e caprichosa razão tivesse ascendido a semelhante revelação da verdade?
A conclusão! Estraguei tudo. O sonho me deixou uma impressão de conjunto... Só me lembro de ter cometido o pecado original, é, fui eu. Assim eu devastei toda aquela realidade inocente e feliz. Por mim, aqueles homens conheceram a dor e tomaram-lhe o gosto, ansiavam pelo sofrimento e diziam que a verdade só se comprava pelo preço do martírio. Diziam-me: seremos mentirosos, maus e injustos; sabemo-lo e lamentamo-lo, e essa é a nossa tortura, e talvez por isso nos atormentemos e nos castiguemos mais do que faria o juiz misericordioso que há de julgar-nos no futuro, mas cujo nome nos é desconhecido. Em compensação, possuímos a ciência, e graças a ela havemos de tornar a encontrar a verdade, e então aceitá-la-emos já com consciência. O saber está acima do sentimento: o conhecimento acima da própria vida.
A ciência far-nos-á oniscientes, pois a onisciência conhece todas as leis, e o conhecimento da lei da felicidade está acima da própria felicidade. Mas não tardou que diminuísse o sentimento geral da própria conservação e surgissem voluptuosos e soberbos que proclamavam abertamente que desejavam tudo ou nada. Registraram-se proezas de todo gênero, e, quando não conseguiam nada com elas, restava o recurso do suicídio. Até que, por fim, aqueles homens se cansaram dos meus absurdos esforços de mostrar-lhes que o pecado era meu; nos seus rostos se refletiu a dor, e proclamaram: a dor é a beleza, pois só a dor tem sentido. Estendia-lhes as minhas mãos e, no meu desespero, acusava-me, amaldiçoava-me e desprezava-me. Dizia-lhes que tudo aquilo era obra minha, apenas eu e mais ninguém, tinha a culpa de tudo. Até me defendiam, dizendo que não tinham, agora, mais do que aquilo que tinham desejado, e que tudo isso acontecera porque tinha, fatalmente, de acontecer.
Foi então que despertei do meu sonho. Provavelmente ainda incorrerei, com freqüência, em erros, até aprender como é que se deve predicar, isto é, com que palavras e com que atos, pois é difícil sabe-lo. Agora já é para mim tão claro como a luz; mas escutem uma coisa: quem é que não erra? Por ter visto uma integridade tão completa, então, como posso acreditar agora que essa verdade não seja plausível também entre os homens? Não me cansarei de andar, ainda que peregrine durante mil anos. Perdi as palavras no sonho, às palavras necessárias, as mais precisas. Apenas me lembro contra o que se deve lutar: o conhecimento da vida está acima da vida; o conhecimento da lei da felicidade está acima da própria felicidade.

Abraços.

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