sábado, 22 de maio de 2010

Cartas – 13 O silêncio e a palavra

Caro Amigo,

Dentre as inúmeras manifestações humanas o silêncio é o que melhor exprime a estrutura densa de nosso próprio inconsciente. Há, em tudo, silêncio eloqüente e palavras tácitas. Iniciarei o meu olhar despretensioso sobre o silêncio que ecoa, grita todo o tempo, dentro e fora de cada uma das narrativas até então apresentadas a você.
Acredito que palavra é a contribuição ao erotismo oral na formação do caráter podendo chegar à logorréia como acontece aos verborréicos, e ao silêncio associado a função constipativa, indo até à retenção absoluta, no mutismo. A palavra expulsa e o silêncio retém, o que implica uma relação próxima da fala com o erotismo anal.
O silêncio como comunicação é, fenomenologicamente, distinto nas relações humanas. Ao pontuar a apreensão correta do humor, tempera o silêncio, sobretudo se a fonte é mágoa, rancor ou saudade. É, sem dúvida, um trabalho conflitivo entre o entender e o mal entendido, o percebido e o despercebido; na dúvida, você optou pelo silêncio, posto que na aventura humana, antes do ato e do verbo, é o silencio que comparece. No princípio, é o silêncio, e no fim, é o silêncio; no nascimento e na morte. Está fortemente presente no amor e na dor. Eu entendo; quanto maior a surpresa ou o espanto, menos palavras para expressá-los.
O silêncio antecede, em muito, a inauguração da palavra. Na filosofia, vamos encontrar os pitagóricos, na contramão da maiêutica socrática, devotando um grande apreço ao silêncio, lugar por excelência para se lidar com os números. A riqueza que o silêncio encerra é de difícil apreensão; daí o pânico que provoca, gerando o ruído como escape, calando com o barulho, a voz e a palavra. Essa fuga ruidosa é uma prática que se alastra na contemporaneidade. Em contrapartida, nada mais subjetivo que o silêncio: aquilo que não se diz, o que se guarda, segredo ou mistério, cujo conhecimento ou desconhecimento permanecerá no escuro.
Surge, então, o sujeito como mistério e o sujeito como absurdo, fora da palavra, sussurro inaudível. Sísifo derrotava o destino nas pausas de seu tormento, quando só ouvia o silêncio, e a pedra rolava do alto à planície, na mesma linha, o silêncio como condição para a consciência e a criação. Somos amantes imersos em emoções que não encontram outro refúgio a não ser o silêncio, o sustento e a privação.
A comunicação humana atua, assim, muito além dos verbos e de seus significados. Há significações implícitas que surgem de pequenos contornos como se vê na arte; cor, forma, traço, linha. Na música, há os tons e semitons que provocam emoções, no embalo da melodia. A rigor, pode não haver verbo e substantivo, e a comunicação se faz. Como disse, por onde os olhos passam, a palavra e o silêncio se apresentam para nos fazer entender a estrutura compacta das manifestações humanas. Acredito, pois, que as minhas narrativas não secaram; uma fecunda interlocução deve ocorrer. Se necessário me desvelarei aos seus olhos, se assim desejar. Tenha certeza, dia desses o farei.
A palavra como o silêncio servem a muitos propósitos. São inúmeros os significados do silêncio. O silêncio da escuta, o silêncio da pausa, o silêncio da transferência. Temos ainda o silêncio da neurose, do medo, da intransigência. Hoje você é o silêncio, a mudez; está tomado pela mais perfeita expressão do desprezo.
É para despertar suas inquietações que minhas narrativas demandam libertar sua vacuidade interna. Importa a consciência de que nem a palavra plena nem a palavra vazia estão necessariamente ligadas à prolixidade ou ao mutismo, ao maior ou menor número de palavras. A presença da emoção, acompanhada de simbolizações, metáforas e metonímias, é o que intento com minhas narrativas. A palavra e o silêncio podem ser binômio comutativo, cuja regência depende exclusivamente dos envolvidos. Assim, ora é defesa, ora é sideração, isto é, processo que consiste em conduzir o sujeito a viver uma experiência de desapreensão, na qual perde até o suporte da fala.
A literatura nos demonstra que as narrativas podem tornar-se objeto de uma erotização, conforme o deslocamento da erogeneidade na imagem corporal, momentaneamente determinado pela relação entre a palavra e o silêncio. Por sua vez, o esconder-se é mais recorrentemente associado ao silêncio. No armário, há sempre um esqueleto, ou que se guarda lá, ou que se esconde lá, ou que se quer ignorar lá, ou que nem se sabe se existe lá.
É um apelo desarmado, mas enfático, e embute a promessa de uma escuta isenta e uma discrição absoluta. Começa aí uma construção a dois, nem sempre automática, rápida e exitosa. No entanto, é impossível tudo dizer, da mesma forma como é impossível tudo escutar. Esta injustiça é traço indelével em uma relação a dois, onde o suporte se chama transferência.
Clarice Lispector nos dá uma comparação eloqüente; o espelho, lugar silencioso por excelência que fez, em Água viva, extasiar-se com o mistério que é o encontro com a reflexão, na lâmina muda do vidro: Espelho é esse vazio cristalizado que tem dentro de si espaço para se ir sempre em frente sem parar, pois espelho é o espaço mais fundo que existe, onde o silêncio se desdobra em outros silêncios. Do deserto voltaria vazia, translúcida e iluminada, com o mesmo silêncio vibrante do espelho.
Penetrar nessa relação e sair do silêncio não significa abster-se do silêncio sobre algumas de suas experiências, emoções e pensamentos, mesmo que se mostre muito falante e mesmo o mais volúvel possível. Talvez fale bastante de si mesmo e de suas experiências, mas não fale desse lado de si que aflora silenciosamente na situação inconsciente, ou seja, o silêncio do que não se quer dizer, ou que é dito pelo seu contrário, silêncio vazio de palavra. No primeiro caso, a palavra pode ser falada com a quebra do silêncio. No segundo, o silêncio pode falar como exclusão da palavra. O que não pode ser dito é o que está excluído, mas incluído de outra forma, porque atua, não segue o mesmo caminho e precisará de um tempo, embora não determinado, para se pronunciar ou jamais o fará.
Portanto, entender o silêncio como um aquém da palavra é apenas entendê-lo parcialmente, pois pode muito bem ser um além da palavra. Em verdade, não temos em português o hábito de se distinguir calar-se de silenciar-se, mas é bom esclarecer que o tacere envolve um ato de volição, ausente no silere. Indistintamente da razão, podem ser várias, cala-se. Além do mais, há sobre o calar um aprendizado e uma sabedoria, gerando em todas as línguas uma infinidade de axiomas e máximas, ora assentimento, ora negação. O silêncio também fala e, quando não é palavra, prepara seu advento. Portanto, mesmo que você não fale você sempre está a dizer alguma coisa, no sonho, no lapso, no ato falho, no chiste e no sintoma. Além do mais, é o silêncio que apaga o manifesto para ensejar o aparecimento do latente. Claro que nos dois já passamos por isto, apenas você não estava consciente, ou estava?
Qual é o incomodo do silêncio e da palavra. Pessoalmente o seu silêncio me remete ao desamparo: a ausência da palavra parece sinônima de sombra. A palavra é sempre esperada. Em sociedade, quando não se fala, alguém se sente impelido a tomar a palavra. É impensável um encontro de duas pessoas, em que não há troca de palavras. É certo que o dito não tem volta. E assusta. Por mais que se explique, ele traz uma afirmação que não se apaga com o desmentido ou com a reparação, e nem mesmo com o perdão. Falar é revelar-se. É expor-se. É quebrar o sigilo. É desvendar mistérios.
O duplo sentido está todo o tempo – seja no silêncio, seja na palavra – unindo os opostos, apondo-lhes o sinal positivo ou negativo. Em ambos cabe o sentido de: opressor, provocante, implacável, aprovador, humilde, apaziguador, sublime, sagrado, indulgente etc. De onde, então, provém a inquietante estranheza que provem do silêncio, da solidão, da obscuridade? Nada podemos dizer da solidão, do silêncio, da obscuridade senão que são esses verdadeiramente os elementos aos quais se liga a angústia, que jamais desaparece inteiramente na maioria dos homens. Mas é reviver experiências da ordem do desamparo e da estranheza é o que possibilita a criação e a renovação.
Pode-se dizer, por fim, que o silêncio se fecha aqui, onde se inscreve a dor, onde repete, com som e fúria, o grito sufocado. E se o ônus é uma exclusão, pode ser esta a troca possível. Numa linguagem freudiana, sobrevém uma limitação significativa na pulsão de vida onde, se não pode faltar a palavra, tampouco pode faltar o silêncio. A vocalização silenciosa e silêncio vocalizado começa por uma desconstrução, onde o prazer pode ser entendido até como um sofrimento. O passo seguinte é a reconstrução de uma nova significação de nos mesmos e de nossos desejos.
Não há milagres, não há mágica, não há cenas espetaculosas, mas há aquela outra cena, inconsciente, silenciosa, restrita à intimidade de dois homens, sem platéia, onde passo a me calar, escutando; e você, que é só silencio, descobre a eloqüência de uma fala sufocada e a experiência inédita de se sentir escutado. Descobriremos, pela mesma via, que o silêncio era o verdadeiro regente do dueto, onde as pausas, como na música, não significam vazio, tornando-se fundamentais à melodia: pausas e notas. Parafraseando Heidegger, a palavra é filha do silêncio.

Abraços.

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