sexta-feira, 28 de maio de 2010

Interiorização do absurdo

Assistimos o nascer e o desenvolver do sentimento e à interiorização do absurdo no Mito de Sísifo. O homem absurdo não é servo de nenhum código moral, mas, um consciente imitador dos protótipos vivos da sua atitude, são eles; o D. Juan, o ator e o conquistador. O primeiro põe em atos uma ética da quantidade; o sedutor que vive a vida apaixonado ao máximo. Não há um nobre amor, mas o que reconhece; tanto os efêmeros quanto os duradouros. Para o segundo, retrata a vida efêmera da fama efêmera. Ele demonstra em que medida o ser interpretado cria. A arte consiste em fingir absolutamente, entrar o mais profundamente possível em vidas que não são suas. O terceiro, o conquistador, guerreiro que com todas as promessas de eternidade, afeta o envolver pleno da história humana. Ele escolhe a ação sobre a contemplação, consciente do fato de que nada pode durar e não é vitória final. Excede por ter consciência da grandeza do espírito humano, mergulhando no mais ardente da alma das revoluções.
Mas foquemos na absurda personagem do criador e a alegria absurda por excelência da criação, mesmo que seja para nada: criação e nada. Realçamos a personagem de D. Juan, mesmo contando com as reformulações que lhe foram trazidas, quer pela música, quer pelas reposições temáticas sem se resumir a alguns aspectos freudianos interessantes, mesmo que, em muitos casos, ridículos.
Uma das interpretações freudianas obvia da personagem detém-se precisamente da inconsciência ou falta de capacidade de valorização entre o bem e mal, acrescida de uma sumária equiparação a um Cupido que se recusa a crescer; complexo de Peter Pan. Transformado no próprio Eros com o qual o trocista, acaba também, por ter afinidades nesta sua característica, dado que Eros convenceu a Terra a copular com o Céu e apropria-se dela, não no sentido físico, mas, no sentido da dominância.
Faremos, com este personagem, um paralelismo a imagem ajustada de Zeus já na sua fase decadente de Deus da ira a Deus do perdão e da fusão com o mundo dos homens em que a sua vida já era motivo de chacota pelos gregos, dada as suas aventuras amorosas e a eterna perseguição da sua mulher e irmã Hera. Uma personagem omnipresente desde os princípios da humanidade é em grande parte o próprio homem, vivendo as contradições que são próprias do relacionamento entre os sexos: como Senhor dos Deuses teria seguramente mais poderes que as mortais ou semi-deusas ou deusas que seduzia, o que tornaria cada conquista um aborrecimento mítico.
Trata-se, claro, de uma abordagem moral e ética, de certo modo límpida e virtuosa. Por isto o difícil entendimento sobre a sua outra face, a face licenciosa e amoral. Uma dualidade universal reguladora de oposições. Aceitar uma prefiguração contraditória acaba por servir de termo antagonicamente comparativo e facultador da opção para a escolha de um dos termos, fomentando assim as réstias do livre arbítrio, necessário ao equilíbrio humano. Embora a questão da liberdade humana no sentido metafísico perca interesse para o homem absurdo, ele ganha liberdade num sentido muito concreto: já não é vinculado pela esperança de um futuro melhor ou eternidade, sem a necessidade de prosseguir o objetivo da vida ou para criar significado, ele goza de uma liberdade no que se refere às regras comuns.
Acredita-se que, com o desenvolvimento de um sentimento de ética na vida grega, a idéia de um deus lascivo, algumas vezes, um ridículo deus–pai, tornava-se desagradável, e então as lendas posteriores tenderam a apresentar Zeus com uma luz mais gloriosa. Seus muitos casos com mortais às vezes são explicados como o desejo dos próprios gregos de traçar sua linhagem até ao pai dos deuses. Já D. Juan personifica ou simboliza os desejos não propriamente de libertinagem, mas sim os desejos de manipulação e poder de alguns seres humanos sobre outros, e propicia, ao mesmo tempo, uma fuga a um ambiente cerrado e ameaçadoramente ascético.
A idéia que fica neste plano é que se trata de uma personagem amoral que utiliza subterfúgios para obter os favores de algumas damas. Aquilo que em Zeus resulta num filho ou filha, resulta em D. Juan numa relação igualmente esporádica cujas conseqüências, não vêm a conhecer.
Podemos referi a D. Juan como um sedutor e é essa a imagem que tem ficado ao longo dos tempos, embora a personagem seja bem mais complexa do que o resíduo que dela se tem feito. Assim, descreve-se hoje o como uma personalidade que necessita seduzir, obsessivamente ou de forma continuada de maneira a não perder, pela não–conquista, uma parte do seu ser com este conteúdo já interiorizado e identificado.
Quanto mais dura é a conquista, mais sobe a fasquia e o desejo de a completar, sendo que esse completamento é meramente conjuntural e não estrutural. Tudo funciona como se o processo de conquista e a realização da mesma seja organicamente uma acumulação de adrenalina que se liberta para vir a renascer numa outra situação igualmente ou mais dura ainda.
Dizem os psicanalistas que as pessoas com esse traço não conseguem ficar apegados a uma pessoa determinada, partindo logo em busca de novas conquistas. As pessoas com essas características são os anarquistas do amor, tornando válidos quaisquer meios para conquistar, entretanto, os sentimentos da outra pessoa não são levados em conta. Aliás, Foucault enfatiza essa questão ao dizer que Don Juan destrói as duas grandes regras de ouro da civilização ocidental; a lei da aliança matrimonial e a lei do desejo da fidelidade.
O problema que se coloca é antes um problema ético, de razão prática: não sendo esta finalista, ou sendo uma ética de meios, como é o caso, sem valores mandatórios transcendentes ou apriorísticos que a suportem. Evidentemente que o campo do livre arbítrio, estando colocado e sendo decidido na esfera do julgador em causa própria, acabam invariavelmente por proporcionar situações destas em que o envolvimento moral acaba por moldar-se ao interesse ou à personalidade do indivíduo.




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