sábado, 22 de maio de 2010

Cartas – 14 Tempo de semear e de colher

Caro Amigo,

Convido você para buscarmos as analogias infinitas da linguagem. Em verdade, esta busca significa não apenas a revelação, mas a completa inconfidência, pois enveredaremos pela contextura das idéias, argumentos, palavras, circunstâncias e pelo enredo e das composição textuais até então encaminhadas.
Mas não traduzirá o diário dos acasos do cotidiano, em que nossas vidas pessoais sejam reveladas aos curiosos, mas buscaremos imprimir as notas fragmentárias de uma reflexão, de uma inteligência que sem descanso buscou, pela escrita e pelas relações de analogia entre diferentes campos de conhecimento: psicologia, matemática, biologia, filosofia, poética, história, literatura etc. Além de revelar o aprendizado com o pensamento, por assim dizer, analógico de Da Vinci, em que arte e ciência confluem nas anotações especulares do artista italiano, estabeleceremos uma maneira de ler autores e obras, onde a  procura será antes uma ação poética do que uma personalidade criadora, essencial para futuros desdobramentos.
Quer a leitura de Da Vinci, quer as leituras de Aristóteles, Foucault, Proust ou Descartes, tanto quanto a própria atividade poética, convergiram para a criação ficcional daquilo que podemos chamar de mente no espelho: expressão de uma mente em busca implacável de consciência, embora sabendo das inconstâncias e variáveis nas relações entre o inteligível e o sensível. 
Então falaremos e juntaremos, com vantagem, uma referência à comédia; eu enxerguei em você o personagem principal da Comédia Intelectual que não encontrou até aqui o seu poeta, e que seria para meu gosto bem mais precioso ainda do que A Comédia Humana, e mesmo do que A Divina Comédia.
. . .
marcada está de amor minha fantasia,
a mais que pode ser vencida em vida,
raras vezes em que se viu tão bem perdida;
contente deste bem, louvo sua senhoria,
oferecendo tudo a vosso intento.
sujeito a vos servires instituído,
sete vezes desejando a tal ferida,
iluminado renovar meu perdimento.
murmurando só para vós rara fraqueza,
a causa que me guia nesta vida.
ou ser no vosso amor achado em falta.
. . .                                                                PK
É uma última referência, bem mais explícita e elaborada. Em verdade, acontece-me muito frequentemente sonhar com um momento singular, difícil de realizar, mas não impossível, pois, tenho certeza, alguém algum dia o fará, o que terá lugar, no tesouro de minhas anotações diárias, junto à Comédia Humana, um desejável desenvolvimento, consagrado às aventuras e às paixões da inteligência.
Será uma Comédia do Intelecto, o drama das existências dedicadas a compreender e a criar. Veremos que tudo o que distingue a humanidade, tudo o que a eleva um pouco acima das condições animais monótonas é a existência de um número restrito de indivíduos, aos quais devemos o que pensar, como devemos aos infortunados o que viver.
Hoje é possível ter uma imagem mais complexa das primeiras anotações diárias e da atividade criadora nelas ensejadas: tanto dos ensaios que compuseram o intróito sedutor ou tradutor de poesias, quanto o ensaísta ou o ficcionista dos contos em seu interior. Todo o período de 20 anos de silêncio e de intensa reflexão é, ao menos intimamente, rompido com a criação de PK. Sejamos realistas o poema modificou a vida do poeta. Mais do que isso, o poema realizou a sutura de tudo o que havia sido central em minha existência, fosse o exercício dos ensaios, das anotações para as ficções e dos exercícios de poemas, ou das próprias reflexões que sustentavam as nossas atividades cotidianas.
Definido, deste modo, como exercício ou pensado como despedida, as anotações foram submetidas a rigorosas exigências formais a fim de traduzir tudo àquilo que o seu longo silêncio e as minhas intensas meditações foram sedimentando como desafio intelectual para a continuidade da atividade criadora, obrigando-me a uma leitura também fragmentária que, por sua vez, instaurou uma outra referencialidade; aquela que imprime a sensação de que cada verso, cada relação entre palavras, cada conquista sonora tem um valor de sentido sempre pressentido, sempre adiado, mas sempre presente como possibilidade. Valor que se define porque as anotações diárias se oferecem, desde o início, como pergunta sobre o gesto primeiro do poema: a consciência que se indaga sobre si mesma pela voz de PK, e por isso se divide, é uma consciência de linguagem, arrastando para o espaço das anotações o sentido da perda de referencialidade.
Entre o harmonioso mim e misterioso mim, respeitando a fuga do odioso eu, que traduzem aproximadamente a razão e a emoção, ou seja, entre o início e o fim, cuja sucessão só se explica e se justifica pela apreensão num espaço de linguagem, as anotações instauram um intervalo em que os vários e contraditórios mins encontram repouso num mim de diálogo e de aceitação da existência. Assim, se PK remete à inconfidência e à desistência e suas tessituras, é PK ainda, que, ao traduz um momento de incerteza e de preparação entre o início e o fim, termina traduzindo o gesto poético pelo qual é também, traduzido.
Lembre-se, a imprevisibilidade de situações e ocorrências devida ao caráter limitado do conhecimento humano ou a um grau relativo e frequentemente mensurável de incertezas e indeterminações regram o conjunto de ações, geralmente pequenas, realizadas pelas pessoas todos os dias de modo sucessivo e contínuo.

Abraços.

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