sexta-feira, 28 de maio de 2010

Elegia ao primeiro amigo

Seguramente não sou eu
Ou antes: não é o ser que eu sou, sem finalidade e sem história.
É antes uma vontade indizível de te falar docemente
De te lembrar tanta aventura vivida, tanto meandro de ternura
Neste momento de solidão e desmesurado perigo em que me encontro.
Talvez seja o menino que um dia escreveu um soneto para o dia de teus anos
E te confessava um terrível pudor de amar, e que chorava às escondidas
Porque via em muitos dúvidas sobre uma inteligência que ele estimava genial.
Seguramente não é a minha forma.
A forma que uma tarde, na montanha, entrevi, e que me fez tão tristemente temer minha própria poesia.
É apenas um prenúncio do mistério
Um suspiro da morte íntima, ainda não desencantada...
Vim para ser lembrado
Para ser tocado de emoção, para chorar
Vim para ouvir o mar contigo
Como no tempo em que o sonho do homem nos alucinava, e nós
Encontrávamos força para sorrir à luz fantástica da manhã.
Nossos olhos enegreciam lentamente de dor
Nossos corpos duros e insensíveis
Caminhavam léguas - e éramos o mesmo afeto
Para aquele que, entre nós, ferido de beleza
Aquele de rosto de pedra
De mãos assassinas e corpo hermético de mártir
Nos criava e nos destruía à sombra convulsa do mar.
Pouco importa que tenha passado, e agora
Eu te possa ver subindo e descendo os frios vales
Ou nunca mais irei, eu
Que muita vez neles me perdi para afrontar o medo da treva...
Trazes ao teu braço a companheira dolorosa
A quem te deste como quem se dá ao abismo, e para quem cantas o teu desespero como um grande pássaro sem ar.
Tão bem te conheço, meu irmão; no entanto
Quem és, amigo, tu que inventaste a angústia
E abrigaste em ti todo o patético?
Não sei o que tenho de te falar assim: sei
Que te amo de uma poderosa ternura que nada pede nem dá
Imediata e silenciosa; sei que poderias morrer
E eu nada diria de grave; decerto
Foi a primavera temporã que desceu sobre o meu quarto de mendigo
Com seu azul de outono, seu cheiro de rosas e de velhos livros...
Pensar-te agora na velha estrada me dá tanta saudade de mim mesmo
Me renova tanta coisa, me traz à lembrança tanto instante vivido:
Tudo isso que vais hoje revelar ao teu amigo, e que nós descobrimos numa incomparável aventura
Que é como se me voltasse aos olhos a inocência com que um dia dormi nos braços de um homem que queria me matar.
Evidentemente (e eu tenho pudor de dizê-lo)
Quero um bem enorme a vocês dois, acho vocês formidáveis
Fosse tudo para dar em desastre no fim, o que não vejo possível
(Vá lá por conta da necessária gentileza...)
No entanto, delicadamente, me desprenderei da vossa companhia, deixar-me-ei ficar para trás, para trás...
Existo também; de algum lugar
Um homem me vê viver; de noite, às vezes
Escuto vozes ermas
Que me chamam para o silêncio.
Sofro
O horror dos espaços
O pânico do infinito
O tédio das beatitudes.
Sinto
Refazerem-se em mim mãos que decepei de meus braços
Que viveram sexos nauseabundos, seios em putrefação.
Ah, meu irmão, muito sofro! de algum lugar, na sombra
Um homem me vê viver... - perdi o meio da vida
E o equilíbrio da luz; sou como um pântano ao luar.

Falarei baixo
Para não perturbar teu amigo adormecido
Serei delicado. Sou muito delicado. Morro de delicadeza.
Tudo me merece um olhar. Trago
Nos dedos um constante afago para afagar; na boca
Um constante beijo para beijar; meus olhos
Acarinham sem ver; minha barba é delicada na pele dos homens.
Mato com delicadeza. Faço chorar delicadamente
E me deleito. Inventei o carinho dos pés; minha palma
Áspera de menino de ilha pousa com delicadeza sobre um corpo de adúltera.
Na verdade, sou um homem de muitos homens, e com todos delicado e atento
Se me entediam, abandono-os delicadamente, desprendendo-me deles com uma doçura de água
Se os quero, sou delicadíssimo; tudo em mim
Desprende esse fluido que os envolve de maneira irremissível
Sou um meigo energúmeno. Até hoje só bati num homem
Mas com singular delicadeza. Não sou bom
Nem mau: sou delicado. Preciso ser delicado
Porque dentro de mim mora um ser feroz e fratricida
Como um lobo. Se não fosse delicado
Já não seria mais. Ninguém me injuria
Porque sou delicado; também não conheço o dom da injúria.
Meu comércio com as mulheres é leal e delicado; prezo ao absurdo
A liberdade alheia; não existe
Ser mais delicado que eu; sou um místico da delicadeza
Sou um mártir da delicadeza; sou
Um monstro de delicadeza.

Seguramente não sou eu:
É a tarde, talvez, assim parada
Me impedindo de pensar. Ah, meu amigo
Quisera poder dizer-te tudo; no entanto
Preciso desprender-me de toda lembrança; de algum lugar
Um homem me vê viver, que me chama; devo
Segui-Io, porque tal é o meu destino. Seguirei
Todos os homens em meu caminho, de tal forma
Que ele seja, em sua rota, uma dispersão de pegadas
Para o alto, e não me reste de tudo, ao fim
Senão o sentimento desta missão e o consolo de saber
Que fui amante, e que entre o homem e eu alguma coisa existe
Maior que o amor e a carne, um secreto acordo, uma promessa
De socorro, de compreensão e de fidelidade para a vida.


Vinícius de Moraes (1943) - Adaptado PK (2010)








Interiorização do absurdo

Assistimos o nascer e o desenvolver do sentimento e à interiorização do absurdo no Mito de Sísifo. O homem absurdo não é servo de nenhum código moral, mas, um consciente imitador dos protótipos vivos da sua atitude, são eles; o D. Juan, o ator e o conquistador. O primeiro põe em atos uma ética da quantidade; o sedutor que vive a vida apaixonado ao máximo. Não há um nobre amor, mas o que reconhece; tanto os efêmeros quanto os duradouros. Para o segundo, retrata a vida efêmera da fama efêmera. Ele demonstra em que medida o ser interpretado cria. A arte consiste em fingir absolutamente, entrar o mais profundamente possível em vidas que não são suas. O terceiro, o conquistador, guerreiro que com todas as promessas de eternidade, afeta o envolver pleno da história humana. Ele escolhe a ação sobre a contemplação, consciente do fato de que nada pode durar e não é vitória final. Excede por ter consciência da grandeza do espírito humano, mergulhando no mais ardente da alma das revoluções.
Mas foquemos na absurda personagem do criador e a alegria absurda por excelência da criação, mesmo que seja para nada: criação e nada. Realçamos a personagem de D. Juan, mesmo contando com as reformulações que lhe foram trazidas, quer pela música, quer pelas reposições temáticas sem se resumir a alguns aspectos freudianos interessantes, mesmo que, em muitos casos, ridículos.
Uma das interpretações freudianas obvia da personagem detém-se precisamente da inconsciência ou falta de capacidade de valorização entre o bem e mal, acrescida de uma sumária equiparação a um Cupido que se recusa a crescer; complexo de Peter Pan. Transformado no próprio Eros com o qual o trocista, acaba também, por ter afinidades nesta sua característica, dado que Eros convenceu a Terra a copular com o Céu e apropria-se dela, não no sentido físico, mas, no sentido da dominância.
Faremos, com este personagem, um paralelismo a imagem ajustada de Zeus já na sua fase decadente de Deus da ira a Deus do perdão e da fusão com o mundo dos homens em que a sua vida já era motivo de chacota pelos gregos, dada as suas aventuras amorosas e a eterna perseguição da sua mulher e irmã Hera. Uma personagem omnipresente desde os princípios da humanidade é em grande parte o próprio homem, vivendo as contradições que são próprias do relacionamento entre os sexos: como Senhor dos Deuses teria seguramente mais poderes que as mortais ou semi-deusas ou deusas que seduzia, o que tornaria cada conquista um aborrecimento mítico.
Trata-se, claro, de uma abordagem moral e ética, de certo modo límpida e virtuosa. Por isto o difícil entendimento sobre a sua outra face, a face licenciosa e amoral. Uma dualidade universal reguladora de oposições. Aceitar uma prefiguração contraditória acaba por servir de termo antagonicamente comparativo e facultador da opção para a escolha de um dos termos, fomentando assim as réstias do livre arbítrio, necessário ao equilíbrio humano. Embora a questão da liberdade humana no sentido metafísico perca interesse para o homem absurdo, ele ganha liberdade num sentido muito concreto: já não é vinculado pela esperança de um futuro melhor ou eternidade, sem a necessidade de prosseguir o objetivo da vida ou para criar significado, ele goza de uma liberdade no que se refere às regras comuns.
Acredita-se que, com o desenvolvimento de um sentimento de ética na vida grega, a idéia de um deus lascivo, algumas vezes, um ridículo deus–pai, tornava-se desagradável, e então as lendas posteriores tenderam a apresentar Zeus com uma luz mais gloriosa. Seus muitos casos com mortais às vezes são explicados como o desejo dos próprios gregos de traçar sua linhagem até ao pai dos deuses. Já D. Juan personifica ou simboliza os desejos não propriamente de libertinagem, mas sim os desejos de manipulação e poder de alguns seres humanos sobre outros, e propicia, ao mesmo tempo, uma fuga a um ambiente cerrado e ameaçadoramente ascético.
A idéia que fica neste plano é que se trata de uma personagem amoral que utiliza subterfúgios para obter os favores de algumas damas. Aquilo que em Zeus resulta num filho ou filha, resulta em D. Juan numa relação igualmente esporádica cujas conseqüências, não vêm a conhecer.
Podemos referi a D. Juan como um sedutor e é essa a imagem que tem ficado ao longo dos tempos, embora a personagem seja bem mais complexa do que o resíduo que dela se tem feito. Assim, descreve-se hoje o como uma personalidade que necessita seduzir, obsessivamente ou de forma continuada de maneira a não perder, pela não–conquista, uma parte do seu ser com este conteúdo já interiorizado e identificado.
Quanto mais dura é a conquista, mais sobe a fasquia e o desejo de a completar, sendo que esse completamento é meramente conjuntural e não estrutural. Tudo funciona como se o processo de conquista e a realização da mesma seja organicamente uma acumulação de adrenalina que se liberta para vir a renascer numa outra situação igualmente ou mais dura ainda.
Dizem os psicanalistas que as pessoas com esse traço não conseguem ficar apegados a uma pessoa determinada, partindo logo em busca de novas conquistas. As pessoas com essas características são os anarquistas do amor, tornando válidos quaisquer meios para conquistar, entretanto, os sentimentos da outra pessoa não são levados em conta. Aliás, Foucault enfatiza essa questão ao dizer que Don Juan destrói as duas grandes regras de ouro da civilização ocidental; a lei da aliança matrimonial e a lei do desejo da fidelidade.
O problema que se coloca é antes um problema ético, de razão prática: não sendo esta finalista, ou sendo uma ética de meios, como é o caso, sem valores mandatórios transcendentes ou apriorísticos que a suportem. Evidentemente que o campo do livre arbítrio, estando colocado e sendo decidido na esfera do julgador em causa própria, acabam invariavelmente por proporcionar situações destas em que o envolvimento moral acaba por moldar-se ao interesse ou à personalidade do indivíduo.




quarta-feira, 26 de maio de 2010

Identidade e alteridade

O texto a seguir comunga com a forma mais geral daquilo que defendemos anteriormente, ou seja, a coexistência do lugar e do espaço sem que exista subsunção senão temporal e, entendamos que; quer o tempo, quer o espaço, não fazem divisões rítmicas: são entidades não substanciais, sempre existirão em qualquer caso, qualquer que seja o problema apresentado.
São, assim, nas identidades e nas alteridades que participam a percepção individual do tempo e sua relação com o espaço. Visão cingida na conceituação cronológica. No entanto esse esquema relativamente linear pode se complicar ao se indagar a construção atual de identidade e de alteridade. Seguindo o pensamento deleuziano o lugar pode ser visto como espaço, como uma alteridade que se interioriza a identidade. Esta visão esquizofrênica se relaciona com o tempo como limite do pensamento e obriga o pensamento projetar-se além dos ideais da singularidade.
A alteridade do lugar coloca fora de si o próprio tempo, o tempo é o espaço de todo pensamento, de todo lugar, a forma pura e vazia. A compreensão do lugar como espaço eleva o campo problemático, toma de assalto os ideais inconscientes na fissura do lugar, roubado do pensamento pelo inconsciente, passa por uma etapa transitória, aparentemente mais tradicional, a saber, a relação com o espaço: O lugar é o espaço porque foi feito, reciprocamente, espaço por outros espaços.
Mas a interpretação revitalizada desta primeira etapa não é mais que uma mediação: a plataforma para uma nova superação de um espaço completamente diferente para outro. Como não é possível, então, encontrar uma identidade absoluta, tampouco e factível encontrar uma alteridade substancial e estável, sem que o alter ego se dissemine nos espaços. Os espaços podem ser: étnico e cultural; social e interior.
Entendemos ser necessário construir um paralelo do pensamento de Hegel e sua Fenomenologia do Espírito: A diferença do lugar é uma diferença essencial entre o positivo e o negativo, de forma que o positivo é a referência idêntica ao lugar, de tal modo que não é o negativo, e este é de tal modo um diverso do lugar que não é o positivo. Visto que cada lugar é para o lugar enquanto não é o espaço, cada lugar aparece no espaço e só o é enquanto é o espaço.
Pode parecer confuso, mas não tanto: cada um é para o lugar enquanto não é o espaço e mesmo quando se representa no espaço só é o espaço enquanto essa representação durar, o que nos afasta da conclusão acima baseada em Deleuze, mas apenas porque esta refere o processo já na sua fase seguinte, ou seja, quando o espaço do ser se desmultiplica em vários espaços do ser segundo as representações em campos diferentes ou diferenciados. Estamos sempre no campo da interioridade e da intimidade do lugar e a única coisa que aparece é o espaço do ser representado no ser.
O que nos preocupa, neste momento, não é a existência temporal ou temporária de um espaço que é um lugar interiorizado de forma distinta, mas sim as implicações que a aceitação de uma subsunção poderia trazer para uma análise correta da poética e da personalidade do lugar. O espaço pode ser espaço se de alguma forma se "emancipar" do lugar e essa emancipação liga-se a uma subsunção no mesmo sentido que Hegel e Marx referem na sua dialética do senhor e do escravo que é um processo histórico e não intimista, como se entenderá.
Tal subsunção leva à desidentificação e coloca o indivíduo nos braços da sociedade integrando-o como ser social emergindo num todo igualmente geral. Não é esse o caso do lugar que se mantém ele mesmo e que não joga em planos desidentificativos. O fato do próprio lugar apresentar-se quase até à exaustão de não saber e/ou não ter consciência do que é, elimina qualquer hipótese de desidentificação. Não se pode perder aquilo que se não tem ou com o que não se identifica. Aliás toda a poesia e a prosa do lugar são constituídas por manifestações do próprio lugar.
O problema do lugar e do espaço só se apresenta e só se evolui aqui porque reparamos nesta conceituação e porque julgamos importante realçar este aspecto. O espaço do ser não resulta da confrontação/comparação com o espaço em abstrato, mas resulta sim de um processo interiorizado, no qual o espaço comparativo está sem dúvida remotamente presente, mas que sublima a fase da necessária confrontação/comparação para se produzir e replicar dentro do lugar de ser.
Não termina aqui.

Reflexão: Revitalização

O que nos interessa é realçar o aspecto deste logos, a forma fechada dos planos de revitalização e como o são construídos, através da exploração de campos temáticos por um lado e pela introdução de uma sutil forma de diálogo íntimo entre o lugar e o espaço, o que já entra dentro do campo estético da percepção, através da introdução de um espaço dialogante.
Como o conseguem? A revitalização é, sobretudo, um plano temático em que a novidade se impõe. Antes de mais nada é criação de uma figura dupla. Essa figura, sem atingir o estatuto do heterônimo lugar/espaço, inscreve-se dentro do mesmo lócus fenomenológico, ou seja, reflete a crise do lugar – e da sua sinceridade poética – pela obrigatória constatação, perfeitamente moderna, de que a única forma que se tem de conseguir afirmar a sua subjetividade é anular o lugar e projetar o espaço.
Aqui nos interessa sublinhar dois pontos; o que reflete às observações entre o conteúdo do lugar e a forma enriquecida dentro do lugar/espaço. Ora, é de se entender, que o campo temático não se relaciona com a estética interior do lugar de forma a determinar, através de uma conjunção refletiva, a avaliação dessa mesma estética. Qualquer que seja o campo temático que se enquadre e que se ajuste, mantendo-se a forma como plástica do belo, o enriquecimento acontece.
Ainda, e por outro lado, não existe qualquer anulação do lugar através da introdução do espaço. Importa esclarecer este aspecto porquanto a anulação/aniquilação do lugar de ser enquanto ser está fora de causa; trata-se do ser do lugar, ou seja da substância do lugar, e qualquer conceito de anulação só pode entrar no campo em que a anulação do lugar implica sua entrega perante a predominância do espaço ou dos espaços como ser antropológico, ou ser inserido num processo que já não é do lugar em si mas do espaço em si.
Confusão esta que parece ser partilhada, como veremos. Uma coisa é, e será sempre, o lugar de ser e o espaço como ser, enquanto o espaço do ser e o espaço como coisa totalmente distinta. Será o espaço, enquanto espaço, pelo fato de ser originalmente outro lugar de ser e continuar, cada vez mais remotamente se afastar do lugar de ser inicial ou do lugar de partida, passando a conter já não o substante, mas sim as replicações sucessivas e de qualidades diferentes do lugar dentro do espaço?
O lugar e o espaço são, ao meu ver, perfeitamente compatíveis como entidades distintas sem subsunção de um pelo outro. Enquanto a possibilidade de o espaço ser o projecto conscientemente sonhado ou expressamente admitido, o problema coloca-se na mesma relação de complementaridade fundida e nunca de oposição. Compreendemos a dificuldade de se admitir a possibilidade destes lócus se seguirem um ao outro sem que isso implique substituição ou diferenciação de um pelo outro, abrindo desta forma caminho à heteronomia, ainda tão mal digerida pelo ideário nacional, e ao qual a entrada no "fingimento" não é alheia. Por esta lógica, como um lugar não pode ser dois lugares, um deles não é um lugar.
Procura-se assim, fazer do lugar um fingidor por excelência e trazê-lo aos domínios da transcendência e colocá-lo na mera posição de surrealista. Ora não se pode entender o lugar assim, é preciso vivê-lo com muita seriedade e convicção e utiliza-lo como bálsamo psicológico e terapêutico. Podemos colocar o lugar como problema, mas nunca fingir que o  problema não exista.
Sobre esta questão da subsunção do lugar pelo espaço e dos limiares difusos para a heteronomia, existe abundante literatura que é importante rever, até porque a questão se encontra na ordem do dia nestes momentos de massificação dos campos temáticos. Como ilustrações vejam o valor argumentativo do trabalho secular de Boécio; “como a Trindade é um Deus e não três deuses”. Deus não difere de Deus a título algum, pois não há diversidade de sujeitos por diferenças acidentais ou substanciais, pois, onde não há diferença, não há pluralidade alguma, e daí tampouco número, mas somente unidade. E quando dizemos três vezes Deus e dizemos Pai, Filho e Espírito Santo, estas três unidades não fazem pluralidade numérica naquilo que elas mesmas são, se consideramos a própria realidade numerada e não o modo pelo qual numeramos. Neste caso, a repetição de unidades produz pluralidade numérica; quando, porém, se trata da consideração da realidade numerada, a repetição da unidade e o uso plural não produzem de modo algum diferença numérica nas realidades.
Não termina aqui.

Cartas – 19 Eu, você e platão

Caro Amigo,

Reclinar-me-ia ao seu lado, ao seu contato desfrutar-me-ia da sua sabedoria e, de tal sorte, a sua sabedoria escorreria em minhas entranhas, como a água dos copos que pelo fio escorre do mais cheio ao mais vazio. Se assim for à sabedoria, muito apreciaria deitar-me ao teu lado e cumular vasta e bela sabedoria. Ordinária, no entanto, seria a minha, enquanto a sua, brilhante, exuberante. Com efeito, não poderia dizer que há maior bem para o bom-amante do que o seu bem-amado.
Diferente do amor que nasce do ardor de alguns heróis, o amor dá aos amantes um dom emanado de si mesmo. Mas, a maior honra é a virtude que se forma em torno do amor, mais ainda, quando é o amado que gosta do amante mais do que o amante gosta do amado. Porém, o amor não é todo belo e digno de ser louvado, mas apenas o que o leva a amar belamente. Considero, pois, ser mais belo amar claramente que às ocultas. Onde, afinal, se estabeleceu que é feio o aquiescer aos amantes? Por defeito dos que assim estabeleceram, graças à covardia, ou foi em conseqüência da inércia dos que assim estabeleceram. De toda sorte, o encorajamento aos amantes é extraordinário e não algum ato feio, se há uma conquista, o seu ato é belo e, ainda, sua tentativa de conquista ao amante à possibilidade de ser louvado na prática de seus atos.
A meu ver, isso não é uma coisa simples, como foi dito, não é o amor em si e por si belo ou feio, mas se decentemente praticado é belo. Amar o corpo mais que a alma não é, entretanto, constante, por amar um objeto que também não é constante. Resta então um só caminho, deve o bem-amado decentemente aquiescer ao amante, assim quando se presta servidão ao amado, não se tem um ato censurável, pois se aceita a servidão pela virtude. Servir ao outro por julgar que se transformará em uma pessoa melhor, ou em sabedoria ou em qualquer outra espécie de virtude, não é feio nem é uma adulação.
É preciso então congraçar num mesmo objetivo essas duas faces, a do amor aos homens e a do amor ao saber e às virtudes, ao considerarmos ser belo o aquiescer o amado ao amante, chegam ao mesmo porto amante e amado cada um com a sua face, servir ao amado que lhe aquiesce, em tudo que for justo servir, e ajudando ao amante tornar-se sábio e bom, em tudo que for justo ajudar. Ao amado cabe contribuir para a sabedoria e demais virtudes, ao amante em precisão da sabedoria e da virtude. Quando o mesmo objetivo converge essas duas formas coincidem ser belo o aquiescer o amado ao amante, e em mais nenhuma outra ocasião.
Dizem alguns, é verdade, que os amantes são despudorados, mas estão enganados; não é por destemperança que se tornam amante, mas por audácia, coragem e masculinidade, porque acolhem o que lhes é semelhante. Quando então se encontra com aquele que é a sua própria metade, tanto o amante como qualquer outro, então extraordinárias são as emoções que sentem, de amizade, intimidade e amor, a ponto de não quererem separar-se um do outro, nem por um pequeno momento.
A ninguém teria o efeito de se tratar de uma união sexual, ao contrário, alguma coisa quer a alma de cada um, é evidente, que coisa é essa a união não pode dizer, mas adivinha e a indica por enigmas. Homem ele é, mas além de homem ele é belo. Falta-lhe, porém um poeta como era Homero para mostrar sua beleza de deus. É na beleza da sua pele que o seu viver entre flores o bem atesta, onde houver lugar bem florido e bem perfumado, o amor se assenta e fica.
A temperança é o domínio sobre prazeres e desejos. Ao amor, nenhum prazer é predominante. Se inferior, seria dominado pelo amor, e dominando os prazeres e os desejos o amor seria excepcionalmente temperante. Cabe lembrar que o amor é um bom poeta, como, em geral, o é em toda criação artística, pois o que não se tem ou o que não se sabe, também a outro não se poderia dar ou ensinar. Sabe-se que a poesia é múltipla, pois passa do não-ser ao ser poesia, de modo que as confecções de todas as artes são poesias, e todos os seus artesãos poetas.
Concebem-se assim, na Philía, os guerreiros que, morreriam em favor da realeza dos filhos, se não antes por uma virtude imortal e por tal renome e glória que todos tudo fazem, e quanto melhor tanto mais, pois é o imortal que eles amam. Concebem-se, também, aqueles fecundados em seu corpo e voltam-se de preferência para as mulheres, são amorosos pela procriação, conseguindo para si imortalidade, memória e bem-aventurança por todos os séculos seguintes. Mas há os que concebem em Eros a alma, mais do que no corpo, o que convém conceber e gerar, lhes convém senão o pensamento e a virtude. Entre estes estão os poetas e os artesãos. Assim são os homens belos eles acolhem, por estarem em concepção. Ao encontrarem uma alma bela, nobre e bem dotada, para um homem desse ele logo se enriquece de discursos sobre a virtude, sobre o que deve ser o homem bom e o que deve tratar, e tenta educá-lo, pois ao contato, sem dúvida, do que é belo e em sua companhia, o que há muito ele concebia então, dá à luz e gera, sem o esquecer, tanto em sua presença, quanto em sua ausência, e o que foi gerado, ele o alimenta justamente com esse belo homem, de modo que uma comunidade, muito maior que a dos filhos, ficam tais indivíduos mantendo entre si e, uma amizade mais firme, por serem mais belos e mais imortais os filhos que têm em comum, por terem dado à luz muitas obras belas e gerado toda espécie de virtudes. Deles já se fizeram muitos cultos por causa de tais filhos, enquanto que da Philia ainda não se fez nenhum.
Poderia ser, pois, em Eros os casos de amor em que você pudesse ser ou ter sido iniciado, em sua perfeita contemplação, mas, diante desses diferentes graus de amizade, quando procedidos corretamente, não sei se seria capaz. Em todo caso, eu direi e nenhum esforço pouparei. Siga-me se for capaz. Caminhar a este fim é começar a dirigir-se ao belo corpo e se corretamente dirigir-se, deve ama-lo e, então gerar belos discursos. Compreender que a beleza de qualquer corpo é irmã da beleza de outros corpos e, ao se procurar o belo na forma, muita tolice seria não considerar a beleza em todos os corpos. Ao entender isso, fazer-se amante de todos os belos corpos e largar esse amor violento e mesquinho de um só corpo. Considerar, então, que a beleza da alma é mais bela que a do corpo, mesmo que alguém de alma gentil se encante, contente-se, ame, se interesse, produza e procure discursos que tornem outros melhores, então se obrigue a contemplar no ofício e nas leis suas semelhanças. Julgar, pois, de pouca significância a beleza dos corpos. Depois dos ofícios, transporte-se então para a beleza das ciências e olhando para o belo, já há muito sem amar a beleza individual de um corpo, de um homem ou de um só costume, não se amarre nessa escravidão miserável e de um mesquinho discurso, mas volte ao vasto oceano do belo pois é inesgotável o amor à sabedoria.
Quando então, subindo a partir do que aqui é belo, do correto amor aos homens, comece a contemplar aquele belo e estaria a atingir o ponto final. Em que consiste, afinal, o proceder corretamente nos caminhos do amor ou por outro se deixar conduzir. Comece do que aqui é belo e, em vista deste belo, suba sempre, como que servindo-se de degraus, de um só para dois e de dois para todos os belos corpos, e dos belos corpos para os belos ofícios, e dos ofícios para as belas ciências até que das ciências acabe naquela ciência, que nada mais é senão o próprio belo. A essa altura da vida, meu caro, você poderia viver a contemplar o próprio belo.
Se, algum dia, eu o vir, não será como ouro ou como a roupa que parece ser, ou como o belo corpo, cuja vista fico agora aturdido e disposto. Como outros muitos, contanto que o veja, sempre estarei ao seu lado, nem a comer nem a beber, se de algum modo fosse possível, mas a só contemplar seu corpo e estar ao seu lado. Que pensa então que aconteceria se ocorresse ao contemplar o próprio belo, nítido, puro, simples, e não repleto de carnes humanas, de cores e outras muitas ninharias mortais, mas pudesse contemplar o próprio belo divino em sua forma única? Sentiria diante de você, somente diante de você, o que ninguém imaginaria haver em mim, o envergonhar-me de quem quer que seja. Ora, é diante você somente que me envergonho.
Safo-me então de sua presença e fujo, e quando o vejo envergonho-me pelo que admiti. E muitas vezes sem dúvida com prazer o veria não existir entre os homens, mas, se por outro lado tal coisa ocorresse, bem sei que muito maior seria a minha dor, de modo que não sei o que fazer. Sei, no entanto, que nem ao quem é belo você tem consideração, antes despreza tanto quanto ninguém poderia imaginar, nem a virtude, nem a amizade, todos esses bens você julga que nada valem, e que nós nada somos - a que digo - é ironizando e brincando com os homens que você passa a vida.
Uma vez porém que fica sério e se abre, vejo as estátuas em seu interior. Eu por mim já uma vez as vi, e tão divinas me pareceram elas, com tanto aura, com uma beleza tão completa e tão extraordinária que eu só tinha que fazer imediatamente o que me mandasse. Julgando, porém que estava interessado em minha beleza, considerei um achado e um maravilhoso lance da fortuna, como se me estivesse ao alcance, depois de me aquiescer a você, ouvir tudo o que sabia. O que, com efeito, eu presumi da minha beleza algo extraordinário! Com tais idéias em meu espírito, eu que até então não costumava sem um acompanhante ficar só com você, dessa vez, despachando o acompanhante, encontrei-me a sós e pensei que logo ele iria tratar comigo a que um amante em segredo trataria com o bem-amado, e me rejubilava. Mas não, nada disso absolutamente aconteceu, ao contrário, como costumava, se por acaso, comigo conversasse e passasse o dia, você silenciou-se e foi-se embora.
Depois disso convidei-o a fazer exercícios comigo e entreguei-me a tais exercícios, como se houvesse então de conseguir algo. Exercitou-se comigo e comigo lutou muitas vezes sem que ninguém nos presenciasse. E que devo dizer? Nada me adiantava. Como, por nenhum desses caminhos eu tive resultado, decidi que devia atacar-me a você à força e não largá-lo, uma vez que eu estava com a mão na obra, mas logo saberia de que é que se tratava. Convido-o então a jantar comigo, exatamente como um amante armando cilada ao bem-amado.
Bem, até esse ponto do meu discurso ficaria bem fazê-lo a quem quer que seja. Mas o que a partir daqui se segue, você não me teria ouvido dizer se, primeiramente, como diz o ditado, no vinho não estivesse à verdade. E depois, obscurecer um ato seu excepcionalmente brilhante, quando saí a elogiá-lo, parece-me injusto. E ainda mais, a dor da mordida da víbora é também minha. Dizem que quem sofreu tal acidente não quer dizer como foi senão aos que foram também mordidos, por serem os únicos que a compreendem e desculpam de tudo que ousou fazer e dizer sob o efeito da dor. Eu então, mordido por algo mais doloroso, e no ponto mais doloroso em que se passa ser mordido. Engana-se fazendo-se de amoroso, enquanto é antes na posição de bem-amado que você mesmo fica, em vez de amante.

Abraços.

Cartas – 18 Dostoiévski e eu

Caro Amigo,

Eu sou um homem ridículo. O que significaria ganhar em consideração, se não continuasse a ser um homem ridículo. Seria prazeroso acompanhar os risos alheios se as minhas expensas não os fossem, mas pelo carinho que me inspiram, senão por todos, um sentimento de pena. Eu sempre fui ridículo, na escola, na universidade e quanto mais aprendia, mais reconhecia a minha condição de homem ridículo. Os objetivos de meus estudos não seriam outros senão demonstrarem, em minhas narrativas, o ser ridículo que sou. Minha culpa. O meu orgulhoso não permitiria, por nada, ter confessado, se pelo menos tivesse me permitido confessar a alguém, a qualquer um.
Nesse momento, talvez por sentir impetrado em minha alma, o receio e a consciência de um conhecimento que, humanamente, era mais elevado que o meu, uma convicção assentou-se no meu espírito de maneira inesperada. Subitamente senti uma indiferença sobre tudo, não me interessava mais a existência ou não desse mundo.
Aos poucos fui tomado pelo sentimento de que nada havia fora de mim, como também o nada haveria diante mim. Desde então deixei de me preocupar com os homens e não mais voltei a prestar-lhes atenção. Esta indiferença afastaria espontaneamente os problemas de mim. Em verdade, ainda me lembro, passei a sentir hostilidade contra os homens. Calei-me, silenciei-me ao calcular que a minha presença os aborrecia.
Mas sucedeu-me, então, enquanto olhava ao léu, que alguma coisa me golpeou. Estranho, a rua da minha vida já estava deserta, completamente deserta, e não se via uma alma viva sequer por aqueles arredores. Esta coisa saltou-me à vista de um modo estranho. Voltei a olhá-la, mas não disse nada e segui o meu caminho, essa coisa deitou a correr atrás de mim e denotar seu desespero. Ainda que o conflito não se exprimisse claramente por palavras, então cessou, e deitou-se a correr deixando-me para importunar outro.
Em verdade, desde sempre me esquivei do convívio, qualquer que fosse, o quanto pude, pois isto me era indiferente. Sento-me agora e nem se quer penso em nada, apenas deixo o pensamento vaguear com indiferença, mas sinto uma dor, sim sinto. Se me batessem agora, eu sentiria dor. Mesmo no território moral, se tivesse acontecido algo de triste, eu sentiria piedade, como antes de ter me tornar indiferente. Nesse momento me ocorreu que essa coisa me havia surgido como um problema para qual eu não teria encontrado uma resposta. Era uma pergunta ociosa, mas, no entanto, aborrecia-me. Percebi, então, que nem tudo me era indiferente.
Lembro-se da autêntica inspiração da piedade, e por ela sentir uma dor desconcertante, inverossímil e intempestiva. Esta é a minha situação: tenho um sentimento inexplicavelmente fugidio, mas pendular em minha alma. Meus sentidos estavam, então, a me trair, pois sou um homem e não um zero, ainda, pois vivo. Consequentemente eu me aborreço e sinto vergonha dos meus atos.
Eu poderia conscientemente deixar de existir e, claro, tudo iria também deixar de existir, porém, isto não teria a menor influência sobre o sentimento de piedade que inspira qualquer ser, nem sobre o sentimento de vergonha pela brutalidade em que uma pessoa tenha incorrido. Parecia-me evidente, neste momento, que a vida e o mundo dependiam quase unicamente de mim, mais ainda, que o mundo parecia ter sido criado para mim apenas, talvez todo esse mundo e todos esses homens sejam unicamente eu mesmo. Então, ocorreu-me uma estranha imagem: se eu tivesse cometido alguma ação irremediavelmente desonesta, a mais desconcertante que se pudesse imaginar e, decorrido essa ação, me tivesse aí ultrajado e desonrado, como só nos sonhos pode-se vivenciar, sob o influxo de um pesadelo incessante, a recorda-me do já-feito e do já-dito, sem retorno. Deveria eu ou não, pois, me envergonhar das milhas ações? Essas perguntas pungiam e me molestavam. Tinha certeza afinal da minha impotência perante esses problemas!
Com essa imagem em mente, sucedeu-me, de um momento para o outro, adormecer. Curioso, os sonhos são, de certo modo, coisas muito estranhas. Percebemos em alguns deles uma clareza assustadora, nos seus mínimos detalhes, como uma elaboração artística e, em outros passamos completamente ao largo, como se não existissem, assim como o tempo e o espaço. Os sonhos não se originam, de certo, da razão, mas do desejo. No entanto, sobre que coisas tão complicadas passam às vezes a minha razão, no sonho? Absolutamente incompreensíveis. Por que a minha razão não se revolta?
Por mais indiferente que fosse um sonho ou não o fosse, esse me havia revelado a verdade como se estivesse adormecido ou acordado. O meu sonho revelou-me uma nova vida, exuberante. Adormeci sem perceber, parecia-me continuar meditando acerca desses problemas. Ocorreu-me então, que não sentia mais a dor, tudo havia se partido ou desfeito numa treva pavorosa, sem poder me mover, mas apenas sentir e pensar. Minha resignação, obvio, não tardou, aceitei a realidade sem hesitar, pois, sozinho, o que poderia eu fazer ou dizer, absolutamente sozinho. Minhas idéias cingiam unicamente em torno das sensações de umidade e frio e, como em um sepulcro, não esperava mais nada, pois aceitava a idéia de nada ter a esperar. Senti, então, uma dor fria no coração, como pequenas gotas gélidas a cair minuto após minuto em meus olhos, então gritei com todo o meu ser.
Seja como for, mesmo que haja alguma coisa de mais razoável a ocorrer-me, a ordenar-me, a impor-se ao meu domínio, mas, a castigar-me pela insensatez de continuar a existir com o desprezo, com a indiferença que eu sentia em silêncio e depois calar-me. Conscientemente eu sabia de um modo infinito e inquebrantável, que tudo iria mudar imediatamente, esperava e sentia um orgulho imenso, sem medo, até me desfalecia em gozo só de pensar que não o tinha. Tudo acontecia com a coerência das coisas nos sonhos, rompendo as leis da razão, do espaço e do tempo e deparei-me diante de uma realidade que não era a de um ser vivente, mesmo assim uma realidade. Pensei, então, se tenho que viver outra vez e outra vez viver, por mandato do inexplicável, então que ninguém me vença ou me humilhe. Você sabe que tenho medo de você e diante da humilhante afirmação que traz em si a confissão, sinto em meu coração a dor do meu vexame. Algo emanado silenciosa e dolorosamente, sobre mim, me oprimi. A nostalgia me tortura.
De súbito, eu vi uma luz. Um saboroso e animador sentimento de prazer encheu minha alma pela força dessa luz, engendrou e repercutiu em minha alma e me ressuscitou, eu senti o renascer de uma vida, não menos apreciada e querida, mas inspirada no mesmo e doloroso amor, então exclamei, tremendo com um amor arrebatado, audaz, irreprimível. Um grito surgiu na minha memória, na qual perduram ainda as gotas daquele sangue, que infortúnio. Não sabemos amar de outro modo nem conhecemos outro amor. Eu quero a dor para poder amar.
A luz que cintilava pairava sobre as ilhas helênicas e cingiam contra elas um imenso, visível e quase inconsciente amor, junto a todo o esplendor da floração de suas inumeráveis flores, que me saldavam boas-vindas em um leve e amistoso sussurro e, murmurando-me ignoradas palavras de amor, estavam os filhos do sol; como eram lindos. Nunca eu vi homens tão belos, tão maduros, tinham rostos claros e cheios de luz. Transpareciam neles a inteligência e um saber completo até à tranqüilidade. No entanto, esses rostos respiravam um alvoroço especial: tanto as palavras como a voz desses homens demonstrava uma alegria pueril, não manchadas pelo pecado, porque não havia pecado na afetuosidade, sorriam-me e acariciavam-me e só ansiavam por afugentar do meu rosto, todo vestígio de dor. Mas admito, foi apenas um sonho.
Mas a sensação de amor que aqueles homens belos e inocentes me demonstraram ainda perdura em mim através do tempo, eu os vi, os conheci, os amei, e mais tarde, sofri por eles. Compreendi, desde o primeiro instante, que eu não poderia entendê-los, a ciência daqueles homens se nutria de conhecimentos diferentes, suas preocupações eram também de outra índole. Não aspiravam conhecer a vida, pois as suas vidas estavam completamente preenchidas, seu saber era mais fundo e elevado que a nossa ciência, ao passo que eles já sabiam como haveriam de viver, e isto percebo eu, por não compreender a sua ciência, eu não podia sentir do mesmo modo que eles a grandeza do amor com que contemplavam: tal como se as árvores também fossem homens, aqueles homens não se esforçavam para que eu os compreendesse, amavam-se sem necessidade disso, sem dizerem nada, sem se envergonharem de que eu os amasse ao mesmo tempo em que eles.
Não raro, indagava-me, como poderia eu suscitar tampouco um sentimento de inveja ou de ciúme, como também me perguntava, como se fosse um embusteiro e enganador, a razão de não lhes comunicar alguns dos meus conhecimentos, sobre os quais, naturalmente, desconheciam, e fazê-los cair no espanto, ou simplesmente anunciar meu amor por eles.
Percebi que os filhos gerados do amor entre eles jamais eram vítimas desse arrebatamento de cruel lascívia que se apodera de quase todos os homens desta nossa miserável realidade e, que constituem a única origem de quase todos os pecados da nossa humanidade. Nunca vi dor nem lágrimas naqueles homens, mas um amor exaltado até ao êxtase, a um fervor tranqüilo e puro.
O sentido de pertencimento entre eles e com todo era vital, não careciam de templos, assim não professavam crença alguma, mas a convicção do ápice de suas alegrias, dos limites alcançados na natureza, como gozo antecipado em suas almas. Plena comunicação havia entre eles e se amavam em uma vida de amor recíproco, uma grande vida, um amor universal. Por mais que entendesse eu não podia penetrar na totalidade dos seus sentidos. Por serem intangíveis para a minha razão, experimentei um entusiasmo estéril e às vezes excessivo, de tudo aquilo que eu tinha visto, nos sonhos da minha alma e nos meus sentidos. Confesso, por mais de uma vez o pôr do sol me arrancou lágrimas, pois sempre houve dor no meu ódio aos homens. Por que não podia eu odiá-los e perdoar-lhes? Por que me fazia sofrer amá-los e podia amá-los odiando? Sim, as vezes eu sentia pousar em mim o seu diáfano e aprazível olhar, trespassado de amor, sentia entre eles que também o meu coração se tornava puro e inocente como o seu, não lamentava não poder entende-los, ficava em silêncio adorando-os.
Mas as visões e as figuras reais do meu sonho conservavam entre si tal harmonia e eram tão perfeitas, tão encantadoras, sedutoras e belas, que, ao acordar, como é natural, não seria capaz de tornar a dar-lhes vida na nossa pobre linguagem. No meu sonho, não mais fiz do que cingir sentimentos forjados pelo meu próprio coração e que todas essas nuances os devia ter arquitetado depois, já desperto. Hilaridade, quando concordei com o que as minhas palavras provocavam, eu estava apenas dominado pelo sentimento do sonho e este único sentimento perdurava no meu coração, que sangrava.
Por isso tiveram, naturalmente, que empalidecer na minha consciência e desvanecerem-se, e talvez por isso me sentisse realmente obrigado a imaginar depois inconscientemente as nuances aos quais teria encomendado decididamente a missão de reproduzir, dado o meu apaixonado desejo, que era, de certo modo pelo menos, o sentimento principal. Mas, no entanto, por que não acreditar que tudo foi real? Pode ser mil vezes melhor, mais radiante e belo do que eu descrevo. Pode ser um sonho? Mas não é possível que o fosse completamente!
Olhe, vou confiar-lhe um segredo: talvez tudo isso, nem de longe sequer, pudesse ser um sonho. Pois sucedeu nisto algo do gênero: algo tão real até à saturação, que uma pessoa nem sequer poderia sonhá-lo! Poderia ser a minha alma responsável por ter engendrado esse sonho. Mas como poderia ela ter engendrado sozinha a terrível verdade que eu senti mais tarde? Como poderia eu imagina-la ou sonha-la com o meu coração sozinho? Seria possível que o meu insignificante coraçãozinho e a minha humilde e caprichosa razão tivesse ascendido a semelhante revelação da verdade?
A conclusão! Estraguei tudo. O sonho me deixou uma impressão de conjunto... Só me lembro de ter cometido o pecado original, é, fui eu. Assim eu devastei toda aquela realidade inocente e feliz. Por mim, aqueles homens conheceram a dor e tomaram-lhe o gosto, ansiavam pelo sofrimento e diziam que a verdade só se comprava pelo preço do martírio. Diziam-me: seremos mentirosos, maus e injustos; sabemo-lo e lamentamo-lo, e essa é a nossa tortura, e talvez por isso nos atormentemos e nos castiguemos mais do que faria o juiz misericordioso que há de julgar-nos no futuro, mas cujo nome nos é desconhecido. Em compensação, possuímos a ciência, e graças a ela havemos de tornar a encontrar a verdade, e então aceitá-la-emos já com consciência. O saber está acima do sentimento: o conhecimento acima da própria vida.
A ciência far-nos-á oniscientes, pois a onisciência conhece todas as leis, e o conhecimento da lei da felicidade está acima da própria felicidade. Mas não tardou que diminuísse o sentimento geral da própria conservação e surgissem voluptuosos e soberbos que proclamavam abertamente que desejavam tudo ou nada. Registraram-se proezas de todo gênero, e, quando não conseguiam nada com elas, restava o recurso do suicídio. Até que, por fim, aqueles homens se cansaram dos meus absurdos esforços de mostrar-lhes que o pecado era meu; nos seus rostos se refletiu a dor, e proclamaram: a dor é a beleza, pois só a dor tem sentido. Estendia-lhes as minhas mãos e, no meu desespero, acusava-me, amaldiçoava-me e desprezava-me. Dizia-lhes que tudo aquilo era obra minha, apenas eu e mais ninguém, tinha a culpa de tudo. Até me defendiam, dizendo que não tinham, agora, mais do que aquilo que tinham desejado, e que tudo isso acontecera porque tinha, fatalmente, de acontecer.
Foi então que despertei do meu sonho. Provavelmente ainda incorrerei, com freqüência, em erros, até aprender como é que se deve predicar, isto é, com que palavras e com que atos, pois é difícil sabe-lo. Agora já é para mim tão claro como a luz; mas escutem uma coisa: quem é que não erra? Por ter visto uma integridade tão completa, então, como posso acreditar agora que essa verdade não seja plausível também entre os homens? Não me cansarei de andar, ainda que peregrine durante mil anos. Perdi as palavras no sonho, às palavras necessárias, as mais precisas. Apenas me lembro contra o que se deve lutar: o conhecimento da vida está acima da vida; o conhecimento da lei da felicidade está acima da própria felicidade.

Abraços.

Cartas – 17 A ética e a estética da amizade

Caro Amigo,

A experiência da existência, sob a perspectiva ascética, busca a disciplina com o objetivo de alcançar a prática perfeita em determinado ofício, atividade ou arte, ou seja, constitui algo da qual se sai transformado; devem experimentar o sujeito para alcançar outra forma de ser. No curso da história, o homem: animal de experiência, não cessou de se construir, de trasladar ciclicamente o nível de sua subjetividade, de cingir uma série infinita e múltipla de subjetividades distintas e, sem galgaram um final, não nos apresentou algo que pudesse ser o homem. Busca-se, pois, uma individualidade menos engendrada as regras da masculinidade heterossexista com provas de quanto à mulher foi privada de seu contato com o mundo, sobre elas pairou sua natureza inferior aos homens, no contínuo petrificado de seu habitat. Concomitantemente, o homem heterossexual, se legitimou e penetrou no tecido da literatura canônica por séculos a fio e ainda o são bem representados.
Assim, os espectros do masculino traduzem as tessituras existenciais engendradas por uma versão de narrativa que reflete a sedução e dialeticamente a crise diante da carga cunhada pela exposição de sua essência. Refletir, pois, sobre a amizade é relativizar as engrenagens regulatórias na atividade de seu potencial transcendente e promover uma ruptura com os ideais estereotipados, definidos por nossa sociedade. Em outras palavras, reconhecer na estética da amizade um assunto privativo do indivíduo, de significado apolítico, cuja ordem social determinou seus limites: status social, classe, educação, etc. e destruiu outras variantes da criatividade.
Repensar a moral grega implica rever o domínio da moral, o sentido cingido da experiência concretizada na liberdade de escolha, sobretudo no quadro das relações de amizade atuais. A releitura da estilística da existência desenvolve o primado da amizade, evidencia um processo político que respalda a hegemonia da família nuclear e o declínio das práticas e da reflexão sobre a amizade na sociedade moderna, Sugere, pois, um certo esvaziamento da esfera pública. Ainda assim o declínio da amizade nas sociedades contemporâneas está ligado aos processos de despolitização e da familiarização do privado.
É necessário construir o espaço narrativo para se ler o homoerotismo onde a amizade agrega a experiência e a experimentação de vida. Traçar a amizade como experiência de vida é, portanto, traduzi-la no seio das relações entre as formas, nas relações entre as forças e das relações entre si, construindo a existência da narrativa como obra de arte.
São das relações consigo e com o outro e da migração por outros horizontes que se trabalham as práticas de liberdade, fomentando um estilo, uma vida esteticamente crítica e criativa. As amizades amparadas nas resistências diante da vida e articuladas nas experiências de si inventam e se reinventam de modo preponderantes. A amizade cingida na ética e erigida pela existência subjetivada é facultada às práticas de si, às condutas de si, que resistem as regras do saber e do poder, moldam estilos de vida como princípios éticos. Neste caso, a ética não se desvincula da estética. Ao erigir formas de existência, dobra-se as forças ontológica por questionar o saber, o poder e o si e busca-se nas destemperanças uma arte de viver.
A questão enquadra a amizade na contextura da estética da existência; noção característica da Antiguidade frente ao dilema de inserir a reciprocidade na relação de amizade somente mediante a supressão das relações sexuais. Mesmo assim, a ética antiga, definida pela atividade, assimetria e obrigação de penetração, não oferece nenhum lugar para a Philia, desde que Platão concebera a reciprocidade as expensas de Eros. Como Eros designa uma atividade da alma e Philia representa uma condição, Eros, como atividade, conduz à Philia, evoca amizade, mas somente na alma justa. A relação única entre homens é revelada na ética sexual platônica, que trata da sublimação de Eros, que na relação com a Philia, perde toda carga sexual, transformando-se em um amor pela verdade.
Eros e Philia são dois eixos antagônicos na história da amizade e para se reverter o platonismo nessa margem histórica, será necessária a reabilitação da amizade como forma da estilística da existência e se propor a restaurar Eros, destituído desde a Antiguidade, para a dinâmica da amizade. As relações helênicas entre homens se pautavam na temperança sexual no exercício da liberdade tomando forma no domínio de si, “esse domínio se manifesta na maneira pela qual o sujeito se mantém e se contém no exercício de sua atividade viril, na maneira pela qual ele se relaciona consigo mesmo na relação que tem com os outros” (Michel Foucault). O uso dos prazeres não trata sobre amizade, amor e reciprocidade. Podemos nos dar uma ética das ações e de seus prazeres ao considerar o prazer do outro, e, o prazer do outro, algo que pode ser integrado em nosso próprio prazer.
Gerou-se aqui uma problematização ética marcada, ao mesmo tempo, por dobrar a força equivalente de um gesto ético e estético; significa ou implica pensar uma nova ética, não a ética da transgressão, mas a ética da constante ignorância com formas constituídas de experiência, de libertação pessoal, para a invenção de novas formas de vida, curvar a força, resistir e sobressair ao poder. Os gregos fizeram muito menos e muito mais, como quiseram. Eles dobraram a força, descobriram a força como alguma coisa que podia ser dobrada, e isso unicamente por estratégia, porque eles inventaram uma relação de forças que passava pela rivalidade dos homens livres.
A sexualidade é algo que nós mesmos criamos; nossa própria criação, bem mais do que a descoberta de um aspecto de nosso desejo. Devemos compreender que com nossos desejos e, através deles, instauramos novas formas de relações, novas formas de amor e novas formas de criação. O sexo, portanto, não é uma fatalidade; é uma possibilidade de se alcançar uma vida criativa.

Abraços.

Cartas – 16 Vernáculo das intemperânças

Caro Amigo,

Mesmo se eu fosse um réptil eu ainda teria o poder de amar. Se colocassem um outro corpo deitado no tapete do quarto, como, por exemplo, daquele senhor de olhar maduro, eu copularia com ele e ainda ia querer mais. Ao considerarmos que essa identidade é somente um jogo, é somente uma conduta para favorecer relações sociais e relações de prazer sexual que criam novas amizades, então ela é positiva.
Existe, pois, um outro universo de relações especificamente voltado para as expressões da vida e dentro de uma dinâmica criativa. Mais precisamente, a amizade surpreendida na comunidade de intemperanças. Assim, o revigoramento da amizade cingida na criação literária emerge como promessa de sentidos, dado o seu imaginário rico de relações cultivadas pelas progressivas formas de convívio.
Não há uma pretensão de postulação; mapear a identidade para mantê-la em função de determinados fins, pois o sentido não permeia esse ideário. A reconstrução do mundo revolve pelo avesso e vai se reformulando como se não houvesse leis, ordem, centro, opondo-se a todo um moral arraigado do que se convencionou tomar por bom, belo e justo.
Brecht, Clarice Lispector, Kafka, etc. todos e cada um deles, ao abdicar da beleza, da piedade e da limpeza, reordenam o vernáculo que dão a ler o exercício de si na tarefa de ultrapassar a tessitura que comunga com os morais-arraigados, de modo a reivindicar a liberdade de reconstruir o sujeito e o mundo. Essa perícia é alcançada para marcar um novo olhar. Um olhar o mais próximo possível dos sentidos da vida, distante da realidade, é verdade, mas legando ao sujeito e ao objeto, ao eu e ao outro, ao corpus uma inteligência de reflexão. Não se pode esquecer que quanto maior o estágio de minúcias e de elos emocionais das descrições, mais o assunto e as sensações que se procuravam produzir parecem escapar. As formas de vida são, portanto, agenciadas com a liberdade e inseridas nas dinâmicas das relações de amizade homoeróticas propiciando ler a amizade como um estilo de vernáculo.
A simples disseminação do erotismo revela a voz na afetividade das amizades masculinas como forma de prazer, como forma de saber e de conhecer o outro. A postura do sujeito do vernáculo se lança despudorada ao manipular o já-dito, em outras palavras, o acesso à vida sexual entre homens na história é reinventado.
O silêncio, por outro lado, solicita significação. A percepção da amizade é passível de questionamento quando submetida a outros jugos de valores, de ética, de retórica, ou seja, como as relações homoeróticas, tecidas na rede das vias do pertencimento e da exposição vernacular, são premissas de argumentação? Talvez pela expressão de uma amizade nutrida pelos discursos da transitoriedade, da ausência de experiência de si, dos sentidos da viagem, da deriva, das imagens de si que integram o patamar da posição do sujeito da sexualidade e com o qual ele se constitui. São discursos cingidos pela tensão entre o indivíduo e a sociedade, insuflando um hiato onde a subjetividade coletiva permite a construção de interatividades e com elas associar-se à idéia de a amizade ser também construída pelas práticas de libertação.
“a liberdade que acolhe, consente, diz sim, não pode dizer senão sim e, no espaço aberto por esse sim, deixa-se afirmar a decisão desconcertante da obra, a assertiva de que ela é – e nada mais”
Maurice Blanchot , 1987.
Mas a sociedade institui limites ao sujeito e os distingue: posição social, classe, educação, credo, gênero, etc. destituindo todas as relações criativas. Por certo, inclui as amizades, dadas por um plano privado do indivíduo, fora de toda significação política. Claro, a questão da sexualidade homoerótica privou-se desse parâmetro, principalmente pela condição sexual contida no silêncio, referindo-se a eles como mal integrada em uma comunidade frente ao amor, são, em verdade, comunidade de intemperanças.

Abraços.

Cartas - 15 Destemperanças

Caro Amigo,

 . . . O sofrimento é um momento eterno. Não podemos dividi-lo por estações. Podemos apenas relembrar o seu tom e a sua recorrente narrativa. Conosco o próprio tempo não floresce. Ele rodopia. Parece cingir em um doloroso epicentro. É a imobilidade paralisante de uma vida marcada por cada circunstância ocorrida em sucessão que não pode ser revertida, de modo que nós comemos, e bebemos, e deitarmos, e rezamos, ou ajoelhamos, pelo menos, para orarmos, dependendo da inflexibilidade de leis da sociedade que as regem: essa qualidade imutável, que faz com que cada dia, nos seus mínimos detalhes, se assemelhe com os dias conseqüentes, parecem trair-se com as forças externas, com a essência da existência cuja constante é a mudança, o aprendizado. Do tempo de semear e colher; do silêncio e da palavra; do perdão e da culpa; do jogo da sedução; da amizade em Aristóteles; dos olhos, das mãos, dos dentes; de Riobaldo e Diadorim: Destes nada sabemos e nada poderemos saber.
. . . A consciência que se indagou sobre si mesma pela voz de PK, e por isso se dividiu, é uma consciência de linguagem,(...)  se PK remeteu à inconfidência e à desistência e suas tessituras, é PK ainda, que, ao traduzir um momento de incerteza e de preparação entre o início e o fim, terminou traduzindo o gesto poético pelo qual foi também", acrosticamente, traduzido. . .
. . .
Marcada está de amor minha fantasia,
A mais que pode ser vencida em vida,
Raras vezes em que se viu tão bem perdida;
Contente deste bem, louvo sua senhoria,
Oferecendo tudo a vosso intento.
Sujeito a vos servires instituído,

Sete vezes desejando a tal ferida,
Iluminado renovar meu perdimento.
Murmurando só para vós rara fraqueza,
A causa que me guia nesta vida.
Ou ser no vosso amor achado em falta.
. . .                                                                 PK

Para nós existe apenas uma estação, a estação do desalento. O sol e a lua nos foram tomados. Lá fora, o dia pode ser azul e dourado, mas a luz que entra através do vidro grosso, abafada pelas barras de ferro da pequena janela diante de mim, é cinzenta e mesquinha. É sempre crepúsculo neste claustro, como é sempre o crepúsculo no coração. No domínio da reflexão, não menos do que no domínio do tempo, não há mais movimento. A única coisa que você, pessoalmente, há muito tempo esqueceu, ou pode facilmente esquecer, está acontecendo comigo agora, e vai acontecer comigo de novo amanhã. Lembre-se disso, e você será capaz de entender um pouco por que eu estou escrevendo e com essa contextura. . .
Prosperidade, prazer e sucesso, podem ser de difícil tessitura, mas o desalento é a mais sensível de todas as coisas criadas. Não há nada que se move em todo o mundo da reflexão na qual a tristeza e o desalento não façam vibrar em uma terrível e requintada pulsação. A suave queda das folhas de um dourado tremulante que narra à direção das forças que os olhos não podem ver é uma comparação grosseira. É uma ferida que sangra de qualquer lado, mas não a que toca o amor, mesmo assim sangra novamente, mesmo sem dor. Onde há sofrimento há terreno sagrado. Algum dia as pessoas vão perceber o que isso significa. Elas não saberão nada sobre a vida até elas viverem. A questão é: como sua natureza pode perceber isto?
Encontro, algures na minha natureza, alguma coisa que me diz que não há nada no mundo que seja desprovido de sentido, e muito menos o sofrimento. Essa qualquer coisa, escondida no mais fundo de mim, como um tesouro num campo semeado, é a humildade. A última coisa que me restou, a melhor, foi à descoberta definitiva de que eu cheguei ao ponto de partida para um novo florescer. Despertou de mim, então eu sei que veio na hora certa. Não poderia ter vindo mais cedo, nem mais tarde. Se alguém tivesse me contado, eu teria rejeitado. Se tivesse sido me trazido, eu teria recusado. Como eu a encontrei, eu quero mantê-la. Devo fazê-lo. É a única coisa que tem em si os elementos da vida, de uma nova vida, vida nova para mim. De todas as coisas é a mais estranha. Não se pode adquiri-la, exceto por render tudo o que se tem. É somente quando se perde todas as coisas, que se sabe o que a possui.
Agora eu percebi que está em mim, eu vejo claramente que eu devo fazer, na verdade, devemos fazer. E quando eu uso essa contextura, eu preciso dizer que eu não estou fazendo alusão a qualquer sanção ou comando externo. Eu não admito. Eu sou hoje muito mais individualista do que eu jamais fui. Nada me parece de menor valor, exceto o que sai de mim mesmo. Minha natureza está buscando um novo modo de auto-realização. Isso é tudo com que estou preocupado. E a primeira coisa que eu tenho que fazer é me livrar de qualquer possível sentimento de amargura. E eu realmente não terei dificuldades. Quando você realmente quer amar você irá encontrar o amor esperando por você.
Desnecessário dizer que minha tarefa não termina aqui. Seria relativamente fácil se o fosse. Há muito mais perante mim. Tenho montanhas íngremes para escalar, vales sombrios para passar. E eu tenho que começar em mim. Nem a religião, a nem moral, nem a razão podem, de maneira alguma, me ajudar.
A religião não me ajuda. A fé que os outros tem ao que é invisível, eu tenho ao que pode ser tocado e visto. Meus deuses habitam templos feitos à mão, e dentro do círculo da experiência real, a minha crença é perfeita e completa: muito completa, e talvez, como a de muitos ou de todos aqueles que situam o céu na terra, eu  tenha encontrado não apenas a beleza do céu, mas também o horror do inferno.
A razão não me ajuda. Ela me diz que as leis morais sob as quais sou condenado por destemperança, estão erradas e são injustas, e o sistema sobre o qual sofro é um sistema injusto e errado. Mas, de alguma forma, eu tenho que transformar essas duas coisas em algo justo e certo para mim. Exatamente, como na arte, há uma única preocupação com uma coisa em particular, um momento especial, por isso, é também uma evolução ética do caráter pessoal. Eu tenho de transformar tudo o que aconteceu comigo em algo bom para mim. A cama, a comida, o trabalho de cada dia - começa e termina - as ordens, a rotina, o desalento, o olhar, o silêncio, a solidão, a vergonha. Cada uma e todas essas coisas eu tenho que transformar em uma nova experiência. Não há uma única degradação do corpo que não devo tentar transformar.
Estou consciente ainda que por trás de toda a beleza, e com toda satisfação que possa transparecer, há algum espírito oculto onde as pinturas e as formas são apenas modos de manifestações e, é com esse espírito que eu desejo me harmonizar. Eu cresci e me cansei de articular a linguagem entre homens e coisas. O misticismo na arte, na vida e na natureza é o que estou procurando. É absolutamente necessário que eu o encontre em algum lugar.
Chego a um ponto em que sou capaz de dizer simplesmente, e sem afetação, que os dois grandes momentos na minha vida foram quando meus pais me trouxeram a vida, e quando a sociedade me cerceou os prazeres da vida. Não vou dizer que esta clausura é a melhor coisa que poderia ter me acontecido: porque a linguagem teria sabor de amargura. Prefiro dizer, ou ouvir dizerem de mim, que eu sou uma típica criança da minha idade, que na minha destemperança, e por causa dela, estremeci; eu virei as coisas boas da minha vida para o mal, e as coisas más da minha vida para o bem.
O que é dito, no entanto, de mim pelos outros, pouco importa. A coisa mais importante é a que está diante de mim, a coisa que eu tenho que fazer, se o resto dos meus breves dias não podem ser mutilados, desfigurados e incompletos, é da minha natureza absorver tudo o que tem acontecido, para torná-los parte de mim, e aceitar sem reclamar, sem medo ou relutância. A virtude suprema é superação. A qualquer tempo.
Todas as experiências são referências para uma vida, assim como todos os sofrimentos são sentenças de morte, e três vezes fui sentenciado. Pela primeira vez por ter superestimado a razão, pela segunda vez por ter acreditado nos sentidos da linguagem e no seu poder de persuasão, pela terceira vez por ter sido relegado ao silêncio, sem perdão. Na sociedade, como a constituímos, não há lugar para mim, não tem nada a me oferecer, ao contrário da natureza, com suas doces chuvas que caem sobre as injustiças, como também produz fissuras nas rochas onde eu possa me esconder e vales secretos onde eu posso chorar em silêncio. Ela me prove as noites estreladas para que eu possa andar através da escuridão sem tropeçar, e enviar o vento sobre as minhas pegadas para que ninguém possa acompanhar a minha dor: ela me purificará em águas cristalinas e, com algumas ervas, me fazer inteiro novamente.
Abraços.